01/09/2011 09:35
O fato de não terem sido produzidas muitas obras durante a Ditadura Militar brasileira, ou argentina, ou uruguaia, ou, ou…parece dizer exclamativamente o quanto deixamos de pensar durante esses períodos. E o quanto o pensamento obscurantista persistiu em muitos corações e mentes.
“O pior da censura – concluía um intelectual, no princípio da redemocratização brasileira – é que ela se alimenta de si mesma, censurando-se”. De fato, enquanto alguns poucos jornais deixavam claro que estavam sendo coibidos – “O Estado de S.Paulo” a publicar receitas culinárias e o “Jornal da Tarde” a editar poesias – ambos nas suas respectivas primeiras páginas e no lugar das notícias – as outras publicações foram, terminantemente proibidas de se dizerem censuradas.
Para a Ditadura Militar, tudo tinha de correr conforme a mentira maior – de que viveríamos numa democracia. O corolário disso, contudo, foi a constatação feita por José Saramago logo após a “Revolução dos Cravos”, que restituiu a democracia a Portugal, depois de mais de trinta anos da ditadura salazarista. Era uma inverdade que as gavetas continham romances, ensaios e poesias a despeito da ditadura. Em tempos de ditadura, os cérebros funcionam a meia-boca: ninguém produz obras de arte na expectativa de não poder dizer sequer que a censura existe . No Brasil foram necessário mais de dez anos, desde o fim da Ditadura, para que, por fim, recomeçasse uma produção artística interrompida, principalmente durante o período governamental do general Garrastazu Medici.
Há os resistentes, sem dúvida. Durante o período que se seguiu ao estalinismo, na antiga União Soviética, tornaram-se comuns as pequenas publicações clandestinas (samizdat): elas circulavam como drogas entre traficantes e consumidores. Os poemas críticos, mesmo as edições pornográficas ( ou tidas, como tal, pelo regime), escafediam-se à menor movimentação da polícia. No mais, os fatos aconteciam independentemente dos órgãos oficiais. O pensador Antônio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano, um dos poucos intelectuais marxistas que não seguiu a cartilha leninista do “partido único”, em pleno cárcere a que foi jogado por Mussolini, conseguiu escrever alguns ensaios em que burlou a censurafascista. Em vez de falar de marxismo em seus escritos, substituiu a expressão por “filosofia da práxis”. Logrou ser entendido, apesar do sufoco censório de seus algozes.
Chico Buarque de Holanda, anos mais tarde, conseguiria de outra forma, quase o mesmo no Brasil. Ao relatar numa de suas músicas, como os militares e os policiais invadiam as casas e prendiam as pessoas por qualquer suspeita, ele inverteu a expressão comum de chamar a polícia, pela frase mais que inverossímil “chame a ladrão”, “chame o ladrão”. Era mesmo de se “chamar o ladrão” diante da violência do regime imposto de cima para baixo, depois do golpe militar.
O grave da censura, porém, era mesmo que ela vetava a quem quer que fosse falar sobre a própria censura. O jornalista Alberto Dines quase foi preso ao pôr em dúvida as circunstâncias da morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais notórios torturadores do mundo na época. Conforme a versão oficial, ele teria sofrido de um” mal súbito” (um enfarte, digamos) ao cair no mar, por ter escorregado quando saía de seu iate (sim, o delegado tinha um iate, comprado da família Mesquita, de “O Estado de S. Paulo“). O mergulho, sempre a se crer na versão imposta pelos militares, fora-lhe fatal: tivera um mal estar e veio a falecer. Era uma versão tão estapafúrdia que o jornalista, desde a sua coluna na “Folha”, levantou suspeitas: o delegado era um arquivo vivo; já matara muita gente sob sevícias, conhecia todas as manobras do regime militar. Era de se duvidar de que tivesse morrido de um “mal súbito”. O jornalista pediu maiores explicações e uma autópsia: ela confirmaria a versão oficial. Ou não. Foi intimado a calar a boca, e o fez. Nunca se procedeu a qualquer investigação sobre a morte do delegado. É um dos mistérios do período que continuam sem qualquer resposta convincente.
Dos países sob censura, porém, o que sempre fica são os mistérios. Sabe-se pouco sobre os processos da Inquisição da Igreja Católica. O que sempre se teve, era que o eventual suspeito podia ser submetido a todo o tipo de tortura. Se confessasse, era culpado, fogueira nele; se não o fizesse, era condenado do mesmo jeito, não havia como escapar, ainda que muitos tivessem a sorte de não serem mortos. Uma das formas de saber se o suspeito tinha ligações com o demônio, por exemplo, era jogá-lo em águas profundas com as mãos amarradas, tendo aos pés um peso proporcional a seu tamanho: se afundasse, teria as bênçãos da igreja e se rezaria, então, uma missa por sua alma; se boiasse, era conduzido a uma fogueira para ser queimado vivo. Não havia alternativa. A expressão ainda hoje usada como ausência de qualquer hipótese, em que dizemos que alguém ficou “entre a cruz e a caldeirinha” não deixa, no seu prosaísmo, de ser uma referência àqueles tempos. É que não havia como protestar ou exigir um mínimo de justiça. No fundo, aliás, era a mesma lógica da censura: em qualquer situação: impunha-se que não houvesse qualquer discussão ou denúncia.
Alguns argumentos usados pelos censores tornaram-se famosos, principalmente no Brasil. Para um ministro da educação da época do general Médici, havia que censurar as peças de Bertolt Brecht, ainda hoje um dos maiores dramaturgos de todos os tempos.. Como o autor fora declaradamente comunista e os comunistas censuravam em seus países, nada mais natural que ele fosse igualmente censurado no Brasil da época. A censura justificava a censura. O problema se situava, porém, no processo intelectual.
Consideradas hoje todas as situações, a prática censória quase sempre beirava inegavelmente ao ridículo – risível atualmente, mas assustador naqueles dias. Qualquer obra ou disco que indicasse uma origem “russa”, era objeto de inquirição do censor militar ou não. Foi assim com as gravações da música de Rimsky Korsakov. O grande compositor romântico russo morreu em 1908: nunca se interessou por política e certamente jamais imaginaria a Revolução de Outubro de 1917. Mesmo assim, não raro, foi devidamente arrolado como prova das ligações de alguém com o comunismo. Entre os jornalistas cariocas contava-se que um agente da censura perseguiu durante certo tempo um comunista tcheco infiltrado no“Jornal do Brasil“. O tal agente mencionava o nome. Seria um certo “Copidrek”, ou seja, na linguagem jornalística o “Copydesk” – reescrevedor das matérias. Era a ele que muitos repórteres aludiam quando lhes era cobrada uma determinada notícia que não agradava o regime. Nos ouvidos moucos do censor “copydesk” soava como “Copidrek”. Sem comentários.
Nada disso, porém, e a propósito, transparece hoje em dia. O ridículo tem prazo de validade, o que, no fundo, não deixa de ser bom, mas também significativo. Já ninguém pensa em aprisionar quem quer que seja por escrever, pintar ou filmar cenas de sexo, sejam explicitas ou não. O homossexualismo, com a exceção das tentativas das igrejas cristãs de criminalizá-lo, está legalmente a salvo de qualquer sanção da lei. No entanto, nada garante que as coisas persistam, ou revertam um dia. Sabe-se que os prisioneiros de Guantánamo, que estão sob a guarda do exército americano, são submetidos a torturas, com a leniência das autoridades jurídicas dos EUA. No Irã, as ameaças ao apedrejamento de mulheres consideradas “adúlteras” está inscrito nas próprias leis do país. As sevícias são plenamente praticadas em muitas prisões brasileiras. E há uma resistência renhida de parte não só de alguns militares que se investiguem e se publiquem os abusos cometidos durante o Ditadura Militar.
Diz-se a boca, não tão pequena, que haveria uma reação perigosa e inusitada dos torturadores e seus patrocinadores, se o levantamento sobre os crimes praticados durante a Ditadura forem devidamente apurados. Seria se como a Igreja, ao admitir que cometeu barbaridades, como as que fez com Giordano Bruno que foi queimado vivo por não ser “muito ortodoxo” nas suas idéias, se empenhasse em proibir a divulgação dos erros que admitiu cometer durante séculos.
Talvez, por termos o pensamento na conta de única característica genuinamente humana, os homens seríamos medrosos das suas virtualidades. Os militares que patrocinam golpes em diferentes países, continuam sendo os primeiros a acusar o pensamento como ponto nevrálgico contrário a seus cometimentos. Não é, enfim, por mero acaso ou pior, um paradoxo que, da Inglaterra -berço da imprensa livre – à Líbia, passando pela China, haja certo empenho das autoridades em controlar a internet: ela seria o pensamento em sua forma eletrônica. E, ainda que haja uma diferença fundamental entre ingleses e líbios ( ou sírios, ou chineses), talvez não seja de se estranhar que a questão entre no repertório de maldade de todos os sistemas. A censura é, continua sendo, a única maneira viável de fazer os homens não pensarem. Mussolini reclamava que o cérebro de Gramsci tinha de ser impedido de funcionar, o que afinal, aconteceu meses depois de o escritor, mais que combalido, ter sido libertado da prisão a que o submeteram os fascistas italianos.
Em suma, o fato de não terem sido produzidas muitas obras durante a Ditadura Militar brasileira, ou argentina, ou uruguaia, ou, ou…parece dizer exclamativamente o quanto deixamos de pensar durante esses períodos. E o quanto o pensamento obscurantista persistiu em muitos corações e mentes. O episódio recente do assassínio de uma juíza, intimorata na condenação de assassinos militares, desvela a dimensão do problema: não deve haver um só entre os jovens assassinos que trabalham em seu mister, que não tenha um velho façanhudo a dirigir seus passos e a relembrar os velhos tempos da Ditadura, quando renasceram os Esquadrões da Morte – desta vez não para matar criminosos, mas para eliminar presos políticos.. Foi uma das grandes invenções do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Que, como se sabe, “morreu de doença” e não de “morte matada” etc. etc. etc.
Por: Enio Squeff é artista plástico e jornalista.