10/12/2015 14:00
Tanto quanto a corrupção e a crise, a imaturidade e a incapacidade de dialogar estão no centro da tragédia política, essa sim, com excelência.
Pouco entendo do mundo corporativo, mas já trabalhei em algumas companhias e sei o quanto uma palavra dita ou não dita por uma liderança (um editor, um gerente, um diretor) pode ser determinante para a decolagem ou a ruína de um projeto.
De futebol entendo um pouco, e peço desculpas aos leitores por usar um episódio esportivo para falar de uma crise que é de empatia e alteridade e não apenas política.
Em 2006, quando treinava o Palmeiras, o técnico Tite percebeu que Edmundo, ídolo e principal jogador da equipe, havia se tornado um ponto de tensão no elenco após ser substituído durante uma partida.
Quem conhece o treinador saber que ele não tolera cara feia na hora da substituição: segundo ele, a demonstração de contrariedade é um desrespeito ao clube que paga o salário, à torcida que apoia o time, ao técnico que toma a decisão e ao colega que entra em campo.
Mas se não fosse debelado, pensou o treinador, aquele foco de incêndio poderia contaminar o restante do time. Em vez de ignorar o problema ou constranger o atleta, Tite o chamou para uma conversa em particular.
Disse que precisava saber o que se passava antes de tomar uma atitude. Certo de que não seria punido pelo treinador, Edmundo explicou o incômodo: aquela era a terceira vez que era substituído quando o time estava em vantagem no placar.
E, isso Tite não sabia, o jogador que roía ossos para vencer a partida fazia questão de aproveitar o filé mingnon quando o jogo estava mais tranquilo.
Tite respondeu: “tu tens razão. Não sabia que isso era importante para ti. Isso vai mudar”. E mudou.
Não tente encontrar nessa pequena anedota esportiva qualquer moral da história. Ele serve apenas para ilustrar a importância da manifestação de um mal-estar, muitas vezes abafado pelo grito, pelo remorso ou pelo ressentimento.
Para se manifestar, no entanto, é necessária uma relação de confiança entre quem fala e quem escuta. Construir esta confiança é papel da liderança, que não lida com grupos uniformizados unidos em coro por um ideal.
Lida com um conjunto de indivíduos desconfiados e indispostos à obediência cega às vozes de comando, sejam profissionais, políticas, religiosas ou familiares. Para falar com elas de uma maneira minimamente honesta é preciso descer do pedestal.
Não se trata de se colocar na história como o paizão que viveu mais e cobra respeito e obediência a priori. Trata-se de se colocar como um igual com responsabilidades diferentes. Uma delas é saber ouvir. E compartilhar decisões.
Os títulos colecionados por Tite ao longo da carreira, entre os quais o recente Campeonato Brasileiro, são a premiação de sua capacidade de dialogar. E dão a dimensão da distância em relação aos que preferiram outras narrativas. A do paternalismo de Luiz Felipe Scolari, comandante centralizador e super-protetor do penta, se esborrachou no 7 a 1 de 2014.
A simbologia dessa mudança de postura pode ser aplicada em outros campos. Na crise política atual, há de fato muitos componentes de um sistema perverso de representação, coalizão e financiamento de projetos antes e depois das eleições. Mas há muito também de imaturidade, arrogância e incapacidade de ceder.
Por onde se olha, o despreparo demonstrado por quem se dispõe a enfrentar o impasse chega a assustar. Tanto quanto as suspeitas da Operação Lava Jato e a crise econômica, a ausência de diálogo e a teimosia em se equilibrar nos pedestais sem arredar o pé estão no centro da tragédia política. Pior: é como se um evento levasse ao outro.
Acuada, Dilma Rousseff (PT) parece não ter notado a gravidade do entorno e patina há meses nas próprias decisões (um ajuste fiscal mal explicado, uma reforma ministerial mal desenhada, declarações públicas entre o destempero e a desorientação, insistência em dizer que quem manda ali é ela). Não é de hoje. Vencendo ou não, ela teria saído maior da eleição de 2014 se tivesse feito uma radiografia mais honesta da crise e das condições do país para enfrentá-la.
Preferiu apostar numa narrativa belicosa, reforçada pelo antecessor que corria o Brasil afora falando dos perigos do bicho papão caso as crianças resolvessem atravessar a rua sozinhas.
Para quem debita na conta dos atuais gestores o monopólio da desorientação, no entanto, a postura de aliados, adversários e candidatos a unificar passa longe de qualquer alento.
Em sua carta de amor mal correspondido à presidenta, o vice Michel Temer sepultou a fama de raposa política, hábil, fria, discreta e com visão privilegiada. A indigência política da missiva transformou o presidente do PMDB em fonte inesgotável de piadas nas redes sociais.
A velha raposa, quem diria, era só um menino chorão – e a nobreza da sua missão em direção ao trono é movida por uma série de querelas pessoais, entre elas a ausência de uma reunião com o vice-presidente dos EUA. A se fiar pela carta, Dilma estaria mais segura no cargo se tivesse seguido a orientação de Tite e perguntado os motivos para o bico.
Quando a mágoa vira pedra, fica difícil dizer onde tudo começou. O fim da história é previsível: caminha para o rompimento e passa por uma briga de moleque com bodoque no Congresso. O empurra-empurra entre gritos de “Não vai ter golpe” e “Ai, Ai, Ai, tá chegando a hora da Dilma ir embora” lembra as gincanas de meninos x meninas do Xou da Xuxa.
Eduardo Cunha (PMDB-RJ), de gênio político, corre para entrar na história como o dono da bola que só joga conforme suas regras. Sua gestão como presidente da Câmara é um monumento da baderna política em causa própria – justo ele, que se gaba de conhecer todas as normas e procedimentos internos.
A mesma história terá um capítulo à parte sobre a (ir)responsabilidade de Aécio Neves (PDSB-MG). Derrotado nas urnas em 2014, ele poderia ter assistido de camarote ao naufrágio de um projeto popular sem precisar jogar bombinhas na embarcação. Bastava uma declaração – “lamento a forma como a presidenta se reelegeu, mas aceito o resultado das urnas e a soberania do mandato; voltaremos mais fortes em 2018,mas até lá tenho um mandato de senador para cumprir”.
Em vez disso, preferiu inflamar as ruas e patrocinar, com seu partido, a ascensão e Eduardo Cunha, as pautas-bomba e os pedidos de impeachment que travam agora as saídas para a crise retroalimentada pela baixa política. Como definiu a Economist, não bastassem as dificuldades em buscar saídas para salvar as finanças, o país terá agora de centrar as energias numa batalha constitucional. A Aécio não faltou apenas maturidade quando decidiu se jogar ao chão e gritar “daqui ninguém me tira, esse palácio será meu, meu, meu”, como um velho personagem infantil. Faltou inteligência.
Ninguém tinha mais chance do que o senador mineiro de se eleger presidente do país em 2018; em vez disso, ele corre o risco de assumir, se um dia assumir, uma terra arrasada e tomada por feridas abertas.
Dizem nos bastidores que o medo dele era outro: a ascensão do colega Geraldo Alckmin. Nada pode ser mais simbólico do vácuo atual de lideranças: o governador paulista acaba de tomar uma lição de mobilização política ao tentar emplacar, de cima para baixo, a reestruturação escolar na goela de seus estudantes secundaristas. No maior estado do país, a chamada ao diálogo tem a mesma sofisticação da Tropa de Choque: é bala, porrada e bomba. A queda de sua popularidade era questão de tempo.
Entre 2014 e 2015, tornou-se missão impossível eleger quem entendeu menos os imperativos do mundo contemporâneo. Aparentemente não é um problema só nosso. Derrotado nas urnas no fim de semana, Nicolas Maduro foi à TV dizer para a população venezuelana algo como “eu queria distribuir tablets e casas populares a vocês, mas vocês preferiram votar nos meus adversários e agora não quero mais”. Na Argentina, Cristina Kirchner se recusou a passar a faixa para seu sucessor em razão de uma picuinha: o local da posse.
Aos entendidos, pipoca na área uma pauta aprofundada para relacionar a crise da esquerda na América Latina à sua incapacidade de se inovar; seria acaso que o modelo vitorioso da primeira década tenha sido dragado por fieis escudeiros eleitos na esteira da popularidade de seus antecessores? É pouco provável.
O grau de desamparo dos tempos atuais é proporcional à incapacidade de suas lideranças em ceder espaço, ouvir, sentar e conversar. Este gesto simples, aparentemente delegado aos adultos, pode desativar bombas. Sobram bordoadas e falta Tite fora das quatro linhas.
Diz a lenda que os grandes líderes surgem nas grandes dificuldades. Por aqui, a crise tem sido terreno fértil para o oportunismo. Eduardo Cunha, Paulinho da Força, Jair Bolsonaro e congêneres com estilingue na mão são resultado direto deste vazio.
Fosse apenas uma disputa política, entre tapas e taças de vinho arremessadas, poderíamos dormir tranquilos. Mas nunca é. Quando o oportunismo e a gritaria viram regra e dispensam disfarces a consequência é desastrosa.
Por exemplo: imagina se, no meio de uma briga política para saber quem sai e quem fica, uma barragem se rompesse no coração da exploração de mineral do país. Imagina que o rompimento desse origem à maior tragédia ambiental e varresse, em meio à lama tóxica, o que antes era um rio, uma comunidade, uma cidade.
Imagina que os responsáveis desaparecessem e apostassem no mais indisfarçável silencio na esperança de que ninguém notasse o dinossauro na sala de jantar. Imagina que as lideranças políticas, federais, estaduais ou municipais que receberam dinheiro das controladoras da empresa (ir)responsável se apequenassem como frangos. Difícil imaginar, né?
Em qualquer lugar sério, estaríamos, neste momento, sentados à mesa, de olho na Conferência do Clima em Paris, em busca de uma solução para um Planeta já suficientemente esfolado por um modelo predatório de exploração de riquezas. Não sem antes jogar luz sobre o que acontece no nosso próprio quintal.
O que estamos assistindo, no entanto, é uma briga para subir ou descer de um cavalo que ninguém sabe para onde vai. Simbólica da nossa letargia, a lama tóxica da Samarco não é uma metáfora. É a consequência mais visível (e mortífera) de um debate público abandonado nas mãos de moleques.
por Matheus Pichonelli