16/12/2015 16:24
As ditaduras tinham, ao menos, o mérito da sinceridade. Violavam às claras os direitos e não se escondiam atrás de uma aparente legalidade
Parlamentares engalfinharam-se nos momentos que antecederam a votação para a escolha dos integrantes da comissão especial encarregada de formular o parecer a respeito do impeachment de Dilma Rouseff.
Ao ver a cena transmitida ao vivo pela tevê, não consegui escapar do festival de caras, bocas e chiados da estrepitosa âncora da GloboNews. Quase sucumbi à sensação da perversidade essencial da política. As palavras e os trejeitos sugeriam que, se o confronto fosse disputado a tiros, nenhuma bala seria perdida.
Nos momentos de tensão e crise, a mídia, daqui e dacolá, precisa encaixar suas mensagens no espartilho da luta do Bem e do Mal. Nesse caso, o Mal é a política. A consciência primitiva costuma se esfalfar na luta do Bem contra o Mal.
A vida seria por certo mais simples. Em compensação, a experiência humana perderia a sua complexidade e riqueza ou até mesmo a sua humanidade. Haverá quem prefira essa fórmula. É muito mais simples.
Imagino que, se os problemas do mundo e da vida se resumissem ao embate entre o Bem e o Mal, à luta dos justos contra os pecadores, não existiriam Shakespeare, Dostoievski, para não falar de Dickens e Mark Twain, sem esquecer Kafka e o nosso fantástico Machado de Assis.
Pense, o caro leitor, na figura dos impichadores dos palácios e das ruas. A história recente da política brasileira revela a frenética troca de posições entre ”impichados” e ”impichadores”, tal como o Bem e o Mal transmigram das almas boas para as más, e também em sentido contrário.
Fernando Henrique Cardoso sofreu 14 pedidos de impeachment, Dilma 34. Dessa algazarra jurídico-política sobra o desprezo pelo sufrágio universal como garantidor da legitimidade do mandato na democracia.
Virou moda nos arraiais conservadores, sobretudo entre os economistas e outros analistas da conjuntura, contrapor as políticas econômicas “corretas” aos alegados desmandos populistas embutidos nas medidas orçamentárias de redistribuição de renda. Não pretendo discutir aqui o tema do “populismo” dos economistas. Fica para outra ocasião.
Pois a mesma turma do antipopulismo econômico recomenda que juízes e tribunais se submetam ao clamor das ruas. É o populismo jurisdicional. Estamos diante da reedição do regime de prestação jurisdicional do nacional-socialismo. O Estado alemão foi apropriado pelo “movimento” racial e totalitário nascido nas entranhas da sociedade civil.
Os tribunais passam a decidir como supremos censores e sentinelas do “saudável sentimento popular”, definido a partir da legitimidade étnica dos cidadãos. As primeiras vítimas do populismo judiciário do nazismo foram o princípio da legalidade e o esmaecimento das fronteiras entre o lícito e o que não é.
Quando partiam para esses métodos, as ditaduras tinham ao menos o mérito da sinceridade. Violavam às claras os direitos dos cidadãos e não se escondiam atrás de uma aparência de legalidade.
Dá para perceber que nas almas dos “impichadores-ex-impichados” e vice-versa estão em permanente conflito e cumplicidade o inquisidor Torquemada e Santo Agostinho. Em nome do povo eles buscam construir a Cidade de Deus com métodos truculentos.
Hegel, na filosofia do Direito, ao refletir sobre o Estado moderno, apontava os perigos dessa atitude. Ele condenou veementemente o indivíduo que proclama a excelência das próprias intenções, mas não está submetido a uma regra objetiva e universal. Em um Estado bem organizado só valem as leis e não é lícito violar essa universalidade, “nem mesmo em nome do mandamento que ordena o amor ao próximo”.
Ah, sim, dizem os sabidos de ocasião, o impeachment está consagrado na Constituição. Mas não estão contemplados na Lei Maior o oportunismo político de baixa octanagem e o direito dos parlamentares estuprarem o vernáculo e a história, tal como o luminar que, no fragor do festival de besteiras, proclamou que Joana D’Arc foi crucificada. Bernard Shaw discorda.
por Luiz Gonzaga Berluzzo