O debate político se transformou numa polêmica religiosa

08/03/2016 06:06

”É possível perceber essa leitura idólatra da política nos posts políticos, principalmente depois dos eventos da semana passada. Temos nossos messias, nossas crenças, nossos elementos de salvação e nossas fontes do mal.”

As ideologias são fenômenos religiosos. Mais precisamente, são fenômenos religiosos que fazem parte de uma categoria mais ampla: a idolatria. A ideologia é um tipo especifico de idolatria. Essa percepção foi desenvolvida, principalmente, por dois cientistas políticos cristãos: Bob Goudzwaard (Idols of Our Time) e David Koyzis (Visões e Ilusões Políticas). A tese é muito valiosa para compreendermos a atual situação da política brasileira – bem como o que acontece nas redes sociais.

O que seria a idolatria? A teologia judaico-cristã sempre denunciou fortemente a idolatria como um pecado gravíssimo. Isso porque a idolatria consiste em escolher um elemento da criação e o elevar ao nível da divindade, colocando acima da barreira que deveria separar o Criador da criatura. Quando esse elemento do mundo é divinizado, esperamos que ele nos traga salvação, segurança, conforto e shalom (paz), além de nos livrar do mal – porque é isso que esperamos dos deuses ou do Deus judaico-cristão.

Goudzwaard e Koyzis aplicaram esse princípio na análise política: a ideologia tem seu viés religioso porque transforma uma ideia importante em um ídolo, um deus imaginário, que procura sujeitar toda realidade aquela ideia deificada, prometendo “salvação” aos seus “seguidores”. A ideologia atribui status ontológico, como mal e salvação, a elementos intrínsecos da realidade. Elas identificam os bons elementos da realidade, mas superestimam esses elementos, enquadrando toda a realidade a partir deles, combatendo tudo que se opõem ao ídolo escolhido.

É possível perceber essa leitura idólatra da política nos posts políticos, principalmente depois dos eventos da semana passada. Temos nossos messias, nossas crenças, nossos elementos de salvação e nossas fontes do mal. No Facebook, não se discorda sobre ideias políticas: se briga ferozmente porque o que está em jogo é um deus-ideia. As discordâncias políticas sobre a operação Lava Jato e o ex-presidente Lula não são simplesmente debates sobre ideias e justiça; nas redes sociais, elas se transformam em falhas morais.

Ideias prontas, simplificadas, idolatradas

Você não é simplesmente alguém que discorda de mim, mas alguém moralmente errado porque a minha ideia central é a verdadeira. Ela salva, redime. É um deus e, como todo deus, merece adoração e louvor. O componente idólatra na ideologia obscurece a visão. Ela enxerga elementos intrínsecos da realidade em si como fontes do mal. A partir daí, o debate passa a não ser sobre ideias, mas sobre moral.

Por que você não concordaria em ver a realidade redimida? Só há uma única explicação: existe uma falha moral em você. Uma vez que toda salvação consiste no resgate de algo pecaminoso, e uma vez que você não quer ser salvo, nem quer a salvação da realidade, talvez seja porque você faz parte desse mal. Você talvez não goste dos pobres viajando de avião; ou entrando na universidade pública; ou você talvez não quer trabalhar e quer receber bolsa família; ou quer defender bandidos; ou quer manter alguns privilégios; o quer acobertar as denúncias da mídia golpista e da crise inventada.

Os elementos utilizados pelas ideologias não são completamente falsos; as realidades que eles apontam não são completamente criadas. Há realmente desigualdade, opressão, parcialidade da mídia, falta de segurança e de liberdade. Há realmente elitistas, antipobres, machistas, racistas, intolerantes, vadios, aproveitadores e preconceituosos. O problema é que a idolatria é uma simplificadora excessiva da realidade. A realidade é mais complexa que uma única ideia central pronta. O que o componente religioso das idolatrias faz é colocar suas ideias como divinas, salvadoras, como chaves para a realidade redentora do amanhã.

A salvação vem através da maximização da liberdade individual e da soberania do indivíduo; ou da propriedade comum e da igualdade a qualquer preço; ou das regras morais conservadoras. Todas essas coisas, liberdade individual, igualdade, regras morais, são bons elementos da realidade. Merecem ser defendidos. Mas como eles foram divinizados, as pessoas procuram ler toda a realidade social e histórica a partir dessa única ideia central. E isso encaixa bem com o Facebook, onde o meio incita a superficialidade. Afinal, ninguém tem paciência de ler um texto mais longo no celular; ou de refletir melhor sobre um fato em frente ao computador. Não há tempo para pensar e raciocinar: é preciso postar. Ser rápido. Opinar sobre tudo. E nada melhor que ideias prontas, simplificadas, idolatradas.

O debate político se transformou em debate religioso

Os adeptos da ideologia, segundo Goudzwaard, são “possuídos por um fim”. Ao abraçarem uma ideia central nas redes sociais, as pessoas constroem um alvo e querem que todos os elementos da realidade se adaptem a esse alvo supremo. Os fins justificam os meios porque é preciso chegar ao objetivo que meu deus impõe.

Quando as ideologias enquadram toda a realidade a uma ideia central, surge um problema: a realidade é maior que qualquer ideia central. É mais complexa. Mais difícil. Com mais variantes. Ela não é binária, mas cheia de nuances. Por isso, afirmava Hannah Arendt que toda ideologia possui um viés totalitário, uma vez que, ao tentar ler a realidade a partir dessa ideia suprema, seus integrantes buscam moldar a realidade de acordo com a lógica inexorável da sua preciosa ideia central. Nas redes sociais, se os fatos não concordam com minha preciosa ideia central, azar para os fatos. Millôr Fernandes definiu bem o viés totalitário da ideologia ao falar sobre o comunismo: “O comunismo é uma espécie de alfaiate que quando a roupa não fica boa faz alterações no cliente.”

Assim, pouco importa se faço distorções da justiça, da realidade, das ideias dos outros e até dos princípios que defendo. O importante é que, com minha ideia central implantada, o mundo de amanhã será melhor. Por isso, vale a pena fechar os olhos para corrupção dos meus candidatos ou se ele é descaradamente antiético e homofóbico. Vale a pena esquecer as denúncias – o importante é que os fatos, de alguma forma, sirvam ao propósito último da salvação da realidade. O mundo amanhã será melhor, penso, por isso, ainda que eu não seja machista, vale a pena compartilhar um post maldoso e sexista sobre a ética sexual da jornalista da IstoÉ. O mundo melhor de amanhã superará essa “falha”, esse sacrifício, esse mal necessário. Não é a justiça em si que está em jogo e que precisa ser defendida, mas minha ideia central.

Na teologia judaico-cristã, a ideologia sempre foi combatida porque ela trazia falsas esperanças. Apesar dos deuses serem falsos, eles tinham um poder sobre seus adoradores que os cegava. Paradoxalmente, mesmo não existindo, eles faziam as pessoas serem a imagem e semelhança deles. Isso trazia intolerância e opressão. No Brasil, é inegável que o debate político se transformou claramente em um debate religioso. Mas, infelizmente, esse debate não pegou os aspectos positivos e profundos da religião judaico-cristã, como sacrifício pelo outro, esquecimento de si mesmo, combate a injustiça, necessidade de reflexão racional intensa e constante, mas o que ela tem de mais nocivo, como fanatismo, cegueira, sentimentalismo irracional e intolerância. Infelizmente, com a idolatrização da política, veremos cada vez mais esses elementos nas redes sociais.

 

Por Bruno Ribeiro Nascimento é mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas