Entrevista – ”Temer tem que cair imediatamente”, diz Vladimir Safatle

09/05/2016 12:22

Em entrevista, o filósofo Vladimir Safatle foi categórico ao afirmar que o impeachment da presidente Dilma Rousseff é um golpe e defendeu eleições gerais.

Professor da Faculdade de Filosofia da USP e autor do livro “A Esquerda que não teme dizer seu nome”, o filósofo Vladimir Safatle fez recentemente uma palestra na Ufba em um ciclo sobre crise e democracia.

Estamos na iminência do afastamento da presidente Dilma Rousseff, com a votação da admissibilidade do processo de impeachment, nesta quarta-feira. O que esperar do governo de Michel Temer?

A gente vai ter uma república oligárquica mais uma vez na história brasileira. Um governo sem nenhuma legitimidade. De um presidente que tem 2% de aprovação. 58% da população quer o impeachment dele antes dele começar. Ele vai montar um ministério com os derrotados nas últimas eleições. Pessoas que nunca ganhariam uma eleição, com um programa que nunca seria aceito pela população. Ou seja, é um governo que já nasce de costas para a opinião pública e para a soberania da decisão popular. Ninguém votou em Michel Temer. As pessoas votaram nele para ser um vice-presidente decorativo, como todo vice-presidente dentro da política brasileira sempre foi ou deveria ter sido. Ninguém votou nele para ser um conspirador, para ser um golpista que é o que ele acabou se mostrando.

Tem se noticiado a influência da Fiesp na formação do programa Uma ponte para o futuro, de Temer, e no apoio à mudança na legislação trabalhista, com o eventual novo governo. Apesar disso, as centrais sindicais e a esquerda não têm conseguido mobilizar os trabalhadores. A que o senhor atribui essa apatia?

Há vários fatores. O primeiro é a perda de legitimidade do próprio governo, que não só virou um gestor de uma crise profunda, por mais que essa crise tenha sido alavancada pela briga política. Essa crise estoura no colo do governo. Você tem um governo em crise econômica, em que crise política, que praticamente eliminou sua possibilidade efetiva de transformação social, a partir do momento em que foi eleito com um programa e governou com outro. Eu diria ainda mais. A gente vive um momento de esgotamento. Um triplo esgotamento, da Nova República, como modelo de coalizão de governabilidade, do lulismo como modelo de desenvolvimento econômico, e o esgotamento também da esquerda brasileira. É importante tomar isso de frente. Desde 2010, não houve nenhum novo ciclo de aprofundamento do combate à desigualdade. Tudo isso foi criando uma certa inércia, uma certa paralisia, que quer acreditar que alguma outra coisa é possível, não importa o que seja. Setores conservadores da sociedade souberam se aproveitar disso. Souberam impor um impeachment que é a maneira mais tosca e primária do golpe de estado. Sem crime, um impeachment que é feito por um tribunal, que no caso é o Congresso, que tem um quarto de seus integrantes indiciados. Comandado por um presidente da Câmara que é um réu o (o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, suspenso na última quinta-feira pelo STF). E que vai empossar uma pessoa que fez os mesmos atos da presidente (o vice-presidente, Michel Temer) imputados à presidente, que podem levar ao afastamento da presidente. A gente sabe que esses atos foram usados como pretexto, que não é crime. Primeiro, porque o Congresso estabeleceu uma jurisprudência que não existia. Essas pedaladas fiscais, como um crime de gravidade tal que poderia levar ao impeachment da presidente. Segundo, se isso é um crime dessa gravidade, então todas as pessoas que praticaram deveriam ser imediatamente afastadas. Há 14 governadores que fizeram pedaladas. Essas pessoas não foram sequer julgadas, muito menos afastadas. O que mostra que isso é um mero pretexto. Conseguiram fazer passar um golpe de estado perfeito. Como no México se falava na época do PRI (Partido Revolucionário Institucional, que governou durante 70 anos ininterruptamente) que existia uma ditadura perfeita, porque havia eleições, que não podia dar em nada a não ser o retorno do partido que estava no poder. Assim também é um golpe de estado perfeito, que não parece golpe, porque mobiliza simplesmente a estrutura judiciária. Que mostra que a estrutura do judiciário brasileiro pode permitir essa aberração.

O PT tem falado que Temer não vai conseguir governar. Que vai haver resistência. O senhor acha que uma eventual combatividade da esquerda, dos movimentos sociais e dos sindicatos pode travar esse novo governo?

Não há nada a exigir desse governo, a não ser que ele caia. O Temer deve cair o mais rápido possível., porque ele é resultado de uma usurpação clássica de poder. O mínimo que se pode esperar é o retorno à soberania popular. É preciso fazer eleições gerais. Para presidente, para a Câmara, já que estamos em uma crise profunda que afeta o poder executivo e o poder legislativo. É claro que eles vão tentar fazer de tudo para permanecer no poder. Por duas razões. Primeiro porque eles não vão embora na semana que vem. Estão tentando dar um golpe há muito tempo. Eles conseguiram e não vão aceitar ser destituídos sem mais nem menos. E segundo porque eles perdem todas as eleições possíveis. Todas as pesquisas eleitorais indicam que as pessoas envolvidas diretamente na Lava jato estão em queda livre. A população sabe muito bem o que ela não quer. Pode não ter clareza do que ela quer, mas sabe o que não quer. E esse governo (Temer) não é algo que aparece como objeto de interesse da população. A não ser aquela parcela que usa muito claramente o tópico da corrupção. O problema delas é com o atual governo. Elas poderiam votar em candidatos corruptos. Mas uma boa parte da população que foi tocada pela questão da corrupção sabe que você não resolve o problema com o líder do partido mais corrupto da história brasileira. Quem consegue ter um mínimo de raciocínio enxerga o caráter farsesco de todo o processo. Vai haver uma resistência contínua, vai haver uma insubmissão contínua. Vai haver uma desobediência civil contínua, porque esse governo não tem legitimidade alguma. Seu único destino é cair.

Qual o destino do PT? Lula continua liderando as pesquisas de intenção de voto, mas o partido tem sofrido deserções e o prefeito de São Paulo, Fernando Hadda, afirmou que o PT não deve liderar a esquerda nos próximos anos. Como o senhor avalia?

Tudo deve ser compreendido pelos desdobramentos de 2013 (as manifestações de junho de 2013). Ali ficou claro que o modelo governabilidade chegou ao limite. O modelo brasileiro não tinha mais espaço para transformações. Você tinha uma casta de políticos cujo principal interesse era se preservar. Diante daquele quadro, havia duas alternativas. A primeira era a esquerda compreender o que estava em jogo e se colocar à altura das demandas. Mas para isso seria necessário estar disposta a eliminar os resquícios de arcaísmo., principalmente no que diz respeito à estrutura organizacional. A esquerda é centralista, é dirigista, é hegemonista, linear e, agora, é personalista. São todos esses defeitos que fazem com que as pessoas que procuram uma experiência política renovada não queiram jogar esse jogo. Não houve nenhum ator da esquerda brasileira à altura dessas demandas. Com essa desarticulação, a direita conseguiu recuperar uma parte desse público e organizar o seu campo extremo. Houve um descolamento. Por um lado, a extrema direita que hoje tem 8% das intenções de voto, na figura de um sujeito como Bolsonaro, enquanto a direita tradicional está caindo. Eles conseguiram mobilizar quem tem uma certa aceitação pelo autoritarismo. Isso significa que não há uma população aberta no Brasil ao ideário progressista? Há, só que ela não consegue mais se encarnar politicamente. Haja vista o que os estudantes secundaristas de São Paulo fizeram (ocupação de escolas para demandar melhorias na educação e apuração de casos de corrupção). No Rio, em Goiás. Um movimento absolutamente espontâneo. Mas esse setor não consegue mais se encarnar politicamente.

O ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, que é contrário ao impeachment, atribui o início de uma investida contra Dilma a partir da decisão que ela tomou, em 2011, de reduzir os juros, o que teria desagradado à classe média rentista. O senhor concorda?

Não, acho que é uma leitura enviesada. O governo não apresentou ruptura alguma. Ela tentou mudanças mínimas do ponto de vista financeiro, que era uma briga com o spread bancário. Se reduzia basicamente a isso. Isso está muito mais ligado a 2013 e, principalmente, à eleição de 2014, com o país dividido. Eu até notei isso na época. Eu disse: o país não vai voltar à unidade rapidamente. Isso é um cenário de longo prazo. O que o governo fez? Ao invés de reconstituir sua base de longa data, desarticula o movimento social a partir do momento em que ele toma um programa que não era o seu. O que acontece? Teve uma queda livre. Em dois meses. A elite brasileira olhou para aquilo e disse: esse é o cenário ideal. Agora, é só gerenciar a crise até o momento em que o governo caia. Quem fez isso foi o próprio governo. O governo se suicidou. O governo que decidiu dentro de uma análise da correlação de forças, assumiu para si uma bandeira econômica que distanciou ele da base.

 

Fonte  - A Tarde On Line