Lula pediu socorro à ONU. O que a ONU pode ou não fazer?

01/08/2016 09:45

Na decisão desesperada do ex-presidente Lula, a defesa usa a estratégia de recorrer ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, o qual tem mais significado político do que jurídico

A petição apresentada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a um órgão internacional para questionar um dos procedimentos contra ele na Lava Jato é um mecanismo jurídico possível, mas, principalmente, um ato político.

A defesa de Lula denunciou ao Comitê de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) o que entende ser uma violação cometida pelo juiz federal Sergio Moro no curso da investigação contra o petista. Trata-se de um recurso pouco usual, já que o processo ainda está em andamento na Justiça brasileira, sem qualquer sentença.

Lula é alvo de ao menos quatro procedimentos na Lava Jato. Um deles é um inquérito sob os cuidados da Justiça Federal do Paraná, na qual procuradores e policiais federais investigam se a OAS e a Odebrecht favoreceram o ex-presidente ilegalmente por meio de obras feitas em um sítio em Atibaia, no interior de São Paulo, e em um tríplex no Guarujá, no litoral paulista.

Lula, segundo as suspeitas dos investigadores, é o proprietário oculto desses dois imóveis. Em troca daqueles favores, as empreiteiras receberiam vantagens em contratos com empresas públicas. O ex-presidente nega ter recebido vantagens das construtoras e afirma não ser o dono dos imóveis. O sítio está em nome de Fernando Bittar e Jonas Suassuna, amigos de Lula. O tríplex está localizado em um condomínio pertencente à OAS.

A petição de Lula à ONU foi apresentada no dia 28 de julho e ainda precisa ser aceita pelo comitê antes de efetivamente tramitar no colegiado.

Ao recorrerem a um órgão como o Comitê da ONU, advogados tentam chamar atenção de instâncias internacionais para eventuais falhas cometidas por investigadores e juízes em seu país de origem.

Na prática, porém, esses recursos costumam ter efeitos bastante limitados em um processo judicial.

Qual a queixa de Lula

A defesa do ex-presidente diz que o processo em curso na Justiça do Paraná viola direitos assegurados pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Esse pacto estabelece quais garantias o cidadão deve ter respeitadas, como direito à defesa, veto a torturas, a penas excessivas ou à prisão ilegal.

Quando um país assina um tratado internacional, ele se compromete a aplicar aquelas regras em seu território. Uma das consequências dessa adesão é permitir que qualquer cidadão ou órgão brasileiro possa denunciar ao Comitê de Direitos Humanos quando o pacto é desrespeitado. É uma maneira de fazer com que o país de fato acate aquelas regras.

Essas denúncias, no entanto, não servem para pedir a punição ou defender inocência de alguém, mas para solicitar que um processo ou um julgamento seja realizado respeitando os prazos e as normas legais.

As seis violações de Moro, segundo a defesa de Lula

CONDUÇÃO COERCITIVA

A defesa de Lula diz que procedimento de obrigar Lula a depor no dia 4 de março foi ilegal porque o ex-presidente colaborava com as investigações e não recusou a um convite para ser interrogado, como prevê o Código de Processo Penal.

GRAMPOS

Para a defesa do ex-presidente, o juiz ultrapassou competências ao pedir a interceptação de conversas telefônicas de Lula e de familiares sem a devida comprovação da necessidade do procedimento.

DIVULGAÇÃO DOS GRAMPOS

Segundo os advogados, foi ilegal a divulgação das ligações gravadas, em especial das conversas com a presidente afastada Dilma Rousseff, em março, quando ela ainda era presidente. Como a petista tem direito a foro privilegiado, o uso desse material só poderia ser autorizado pelo Supremo. A divulgação foi repreendida pela Corte, que anulou a validade daquelas gravações.

DIREITO A UM TRIBUNAL IMPARCIAL

A defesa considera um problema do judiciário brasileiro o juiz autorizar as medidas investigativas (como a condução coercitiva e o grampo) e, depois, também julgar o réu. Sobre Moro, os advogados apontam como um dos indícios de imparcialidade a divulgação de informações do processo a veículos de comunicação.

USO ILEGAL DA PRISÃO PREVENTIVA

A petição afirma ser recorrente na Lava Jato a prisão de suspeitos por longos períodos, antes do julgamento do processo. Segundo os advogados, o juiz se vale do mecanismo da prisão para coagir o investigado a confessar crimes ou assinar acordos de delação premiada.

DIREITO DE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Para a defesa, procedimentos de Moro violam o princípio segundo o qual ninguém pode ser considerado ou tratado como culpado antes do julgamento final. Esse direito estaria sob risco porque, em razão da atuação parcial do juiz e das declarações públicas dele de apoio à Lava Jato, criou-se uma “expectativa junto ao público sobre a culpa de Lula” e se incentivou o ódio contra ele.

A petição de Lula foi assinada pelo advogado britânico Geoffrey Roberston, para quem há claro abuso de poder por parte de Moro.

“[Essa ação] Está sendo feita por um juiz que pode ser um investigador muito bom de corrupção (e corrupção precisa ser investigada). Mas quando se trata de julgar, quando se trata do julgamento, é preciso que tenhamos alguém completamente imparcial. E essa é uma das grandes normas que essa corte garante”, afirma o advogado britânico.

Moro não se manifestou sobre a petição. Em outras ocasiões, em respostas a críticas semelhantes a essas, o juiz negou agir com parcialidade e defendeu a publicidade do processo como forma de a sociedade acompanhar o caso.

Comitê tem regras para aceitar denúncias

O comitê da ONU só analisa denúncias em que o reclamante já esgotou todas as possibilidades de recursos em seu país ou quando há uma demora excessiva para a análise final do caso.

O caso que está nas mãos de Moro ainda está em fase de inquérito. Ou seja, não há uma denúncia formal contra o ex-presidente. Nem sequer um processo. Na prática, um eventual julgamento de Lula pelo juiz do Paraná só ocorrerá no futuro.

A defesa de Lula alega já ter recorrido à Procuradoria-Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal para solicitar que Moro se declarasse suspeito para julgá-lo. O Supremo negou o pedido em julho. Ou seja, legalmente, o juiz do Paraná está apto a julgar o petista.

Passos de uma denúncia na ONU

PRIMEIRA ANÁLISE

O órgão avalia se a denúncia é pertinente e se não há mais possibilidades de recursos no país onde o caso ocorre. Não há prazo para isso ocorrer.

ESPECIALISTAS AVALIAM

Aceito o caso, 18 membros de diversos países, chamados “especialistas independentes”, vão analisar a denúncia. Eles não se denominam juízes porque não julgam o caso, apenas apreciam se houve ou não violações dos direitos humanos.

GOVERNO DENUNCIADO SE MANIFESTA

O país denunciado tem até três meses para se explicar sobre as denúncias. Se a petição de Lula for aceita, as respostam deverão ser formuladas por representantes da gestão Michel Temer, caso o afastamento de Dilma seja confirmado pelo Senado.

RECOMENDAÇÃO

Ao final do processo, que pode durar até 12 meses, o comitê elabora uma recomendação sobre aquele caso. O documento pode tanto negar quanto confirmar a existência de violações.

Recomendação tem efeito limitado

Na hipótese de o Comitê acatar a denúncia apresentada por Lula, uma eventual recomendação do órgão terá pouco efeito para o curso do processo contra ele.

“O Comitê ou órgãos internacionais não são uma instância de julgamento. Esse colegiado não atua em um caso específico. Ele apenas dirá se o governo brasileiro está falhando no cumprimento do pacto”, afirma a professora de direito Maíra Zapater, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV Direito SP.

O que o Comitê pode fazer

RECOMENDAÇÕES GERAIS

O mais comum é o órgão internacional sugerir que o país denunciado adote políticas públicas para corrigir falhas. Pode também sugerir mudanças em leis para garantir que aqueles direitos reclamados não seja mais violados.

PAGAMENTO DE INDENIZAÇÕES

Segundo Maíra Zapater, tem sido comum órgãos internacionais sugerirem que o governo denunciado pague indenizações às vítimas ou a familiares. Ela cita como exemplo processos nos quais o Estado é considerado responsável pela morte de um paciente devido à falta de tratamento público adequado.

No caso de Lula, ainda que o comitê concorde com a argumentação da defesa, dificilmente o colegiado vai propor alguma medida concreta. O mais comum é o colegiado sugerir alterações em leis ou a adoção de medidas que evitem situações como as denunciadas.

O que o Comitê não pode fazer

INTERFERIR NO PROCESSO OU JULGAMENTO

Ainda que a recomendação seja favorável ao denunciante, o Comitê não é um tribunal, portanto, não tem poderes para interromper o processo, evitar a prisão de alguém ou exigir a troca do juiz responsável pelo caso.

EXIGIR O CUMPRIMENTO DA RECOMENDAÇÃO

O país não é obrigado a acatar as recomendações do Comitê porque esses órgãos internacionais não podem interferir nos assuntos locais. Há o chamado “poder de constrangimento”, por expor um governo internacionalmente, mas a recusa não causa sanções ao país.

O Brasil, de acordo com a pesquisadora da FGV, não tem histórico de cumprir recomendações de organizações internacionais, em especial quando refere-se a questões políticas.

A Lei de Anistia é um exemplo. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal manteve a anistia a crimes ocorridos durante a ditadura por motivação política. Órgãos ligados à ONU e à OEA (Organização dos Estados Americanos) criticaram a postura brasileira, mas a Corte não alterou seu posicionamento.

Significado político é maior que jurídico

Mencionar tratados internacionais, a exemplo do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ou recorrer a organismos como o Comitê da ONU, podem ser importantes ferramentas jurídicas no curso de um processo – como nos casos em que uma vítima cobra indenizações pela ausência de tratamento médico.

Sob um ponto de vista mais amplo, o que entra em jogo é a imagem do país e a disposição dele em acatar ou não os tratados. Por essa razão, sobre a petição de Lula, Zapater acredita que a motivação da defesa em recorrer ao comitê esteja atrelada mais a uma ação política do que jurídica.

“Pensando em como funcionam os mecanismos internacionais de proteção aos Direitos Humanos, me parece mais uma mobilização para levar lá fora uma questão interna do Brasil, a partir do caso do Lula, do que para ele não ser preso [por uma decisão do Comitê], por exemplo. Até porque a ONU não tem esse poder”

Maíra Zapater – pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV Direito SP

Segundo pessoas próximas do petista, trata-se de uma estratégia para criar um tipo de constrangimento ao Judiciário e, assim, evitar um eventual pedido de prisão por Sergio Moro.

Zapater lembra que, se a resposta do comitê for negativa para Lula, o caso será considerado julgado na esfera internacional, o que reduzirá as possibilidades de a defesa fazer novas denúncias ou acionar outros órgãos fora do Brasil.

A defesa do ex-presidente diz ser a primeira vez que um brasileiro recorre ao Comitê de Direitos Humanos da ONU. Em 20014, a defesa de três condenados no julgamento do mensalão, procurou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ligada à OEA. Os advogados apontaram falhas durante o processo e violações do direito de defesa, mas nada ocorreu até o momento.

 

Por Lilian Venturini