05/07/2018 11:32
Os memoráveis nomes como o de Garrincha e Pelé, precursores do menino @NeymarJr, o qual percebemos que a necessidade de ser ‘bem visto lá fora’ virou patologia
Alguma coisa mudou no futebol. Ou alguma coisa está fora de lugar sobre como o vemos. Ou alguma coisa mudou no psiquismo nacional nestes últimos anos. Ou é o VAR. Ou é tudo isso junto e misturado. Mas que as falas andam meio estranhas, elas andam. Como dizia o velho filósofo, e na época ele não era tão velho assim, tudo que é sólido parece desmanchar-se no ar. A única certeza é a completa perda de referência na maneira como se olha o nosso jogar bola.
Os filmes do saudoso Canal 100 estão aí, e também os vídeos sobre os gols do Brasil na final da Copa de 1958. Quando alguém lembra do Garrincha, a imagem inesquecível é ele parado a uma certa distância do lateral-esquerdo, ameaçando sair para a direita. Uma vez, duas vezes, até que ele finalmente sai. O drible era sempre igual, mas tinha uma grande chance de dar certo. O Botafogo e o Brasil ganharam muita coisa assim.
Diz a tradição oral, e vai saber se é isso mesmo, que ele quase foi cortado da seleção em 1958 porque num amistoso pré-Copa resolveu driblar desnecessariamente o adversário em cima da linha do gol, em vez de simplesmente fazer o gol. Eu acompanho futebol há meio século e nunca vi ninguém propondo a “releitura crítica” desta e outras ditas molecagens do Mané. E olha que releituras do passado à luz dos valores do presente estão na moda. Salve Monteiro Lobato.
Verdade que Garrincha nunca divertiu por divertir. Era o jeito de ele jogar e produzir para o time. O Mané era, como se diz hoje em dia, vertical. Driblava humilhantemente o adversário, mas em direção ao gol. Mais ou menos como o @NeymarJr. E o mistério que não consigo decifrar é por que o mesmo comentarista que amava o Garrincha, e cultua a memória do jeito de o Garrincha jogar, odeia o @NeymarJr. Alguém aí vai protestar por eu comparar os dois. Comparo mesmo.
Já vivi o suficiente para saber como é o futebol, pelo qual sou fanático desde que me conheço por gente. Desde que vi na TV branco e preto o Santos virar em 1963 sobre o Milan, sob uma chuva diluviana no Maracanã, e arrancar para o bi mundial. Posso garantir que @NeymarJr é da tradição vitoriosa do futebol brasileiro. Inclusive no que se convencionou chamar de malandragem. E ninguém foi mais malandro que Edson Arantes do Nascimento, o Pelé.
Ele simulava faltas sofridas como ninguém, e abusava da violência quando achava que podia fazer de um jeito que o juiz não visse. Fraturava a perna dos zagueiros sem dó, e usava o cotovelo sem cerimônia para revidar marcações duras. Não lembro de ele ter sido criticado por isso. Em 1970, contra a Inglaterra, o time ficou com medo que Pelé fosse expulso depois de apanhar muito. Aí Carlos Alberto chamou a tarefa de bater num inglês. Foi celebrado.
E se Maradona fosse brasileiro? Do jeito que a coisa vai, provavelmente proporiam devolvermos a Copa de 1986, e fazermos uma autocrítica pelo famoso gol contra a Inglaterra, aquele com la mano de Dios. E o pior é que foi feito contra os ingleses, uma gente tão civilizada. Eles não mereciam ser tratados com tanto desrespeito, não é? Afinal, ali tem a Premiere League, o mais badalado (um verbo sintomático) campeonato nacional de ludopédio.
Talvez o futebol esteja revelando a face mais nítida da definitiva degradação da autoestima nacional. O que antes era visto como o jeito brasileiro de jogar transformou-se em pecado. Driblar é proibido. Especialmente quando alguém, mesmo que seja um zé ninguém, com sobrenome ou sotaque inglês, ou do resto do “primeiro mundo”, vem nos repreender pelo modo incivilizado como nossos dribladores praticam o bullying sobre os driblados.
Os ingleses exploraram até o tutano (dos negros) o tráfico negreiro. Um dia os ventos da Revolução Industrial pediram mão de obra livre. Junto, claro, com a liberdade de o capital dispor da força de trabalho como quisesse. E aí o tráfico virou crime. Os EUA abriram caminho na bala e na corrupção para as empresas deles dominarem os mercados em escala planetária. Quando conseguiram, a corrupção dos concorrentes virou pecado capital não passível de perdão.
O Brasil sempre teve uma necessidade patológica de ser bem falado lá fora, e está disposto a sacrificar seus interesses por isso. Você não vê algo assim entre americanos, ingleses, alemães, franceses. Mas nesta Copa a coisa vai atingindo o paroxismo. Talvez seja um sintoma a mais dos tempos. Também nisso o lastro mental do colonizado nos arrasta para o fundo como âncora. Se o inglês simula, a culpa talvez seja do @NeymarJr e seu mau exemplo.
É capaz de uma hora alguém quebrar propositalmente a perna do @NeymarJr e o nosso jornalismo esportivo acusar que a culpa foi, no fundo no fundo, dele mesmo.
Alguém duvida?
Por Alon Feuerwerker, jornalista brasileiro, é analista político e de comunicação na FSB Comunicação