Opinião – Lei de proteção de dados ameaça acesso a informação

16/07/2018 13:38

”Uma das informações que mais atrai a atenção do público em eleições são processos a que políticos respondem na Justiça(…)Quem coleta tais dados são a imprensa e ONGs”

Projeto de Lei da Câmara 53/2018, que trata da proteção de dados pessoais, acaba de ser aprovado pelo Senado e, não tendo recebido emendas nessa Casa, passou à Presidência da República para sanção. O presidente pode impor vetos a dispositivos ou a todo o PL, mas não pode modificar o texto. Considerando-se o estado de prostração do governo ante o Congresso, é improvável que Michel Temer vete algo. A nova lei entrará em vigor um ano e meio após ser sancionada.

A quase-lei trata de dados sobre pessoas, coletados por entes públicos e privados, e estabelece radicais restrições quanto ao seu uso. Também impõe obrigações muito onerosas para quem se ocupe de tratar dados considerados pessoais.

É óbvia a necessidade de uma lei que proteja os cidadãos do mau uso de dados pessoais. A União Europeia acaba de promulgar normatização nesse sentido. No Brasil, empresas privadas praticam todo tipo de abuso com dados pessoais que amealham, comercializando-os à vontade. O PLC 53 foi escrito tendo em mente tais empresas, em particular planos de saúde. Há partes inteiras dedicadas só a esse segmento.

Estão isentos de seu alcance as atividades jornalísticas, artísticas e acadêmicas, bem como o segmento financeiro, para o qual a proteção de dados pessoais é objeto de outros dispositivos legais.

Por óbvio, também estão fora de seu âmbito as atividades que não usam dados individuais, mas apenas coletivos, como tipicamente são os empresas de pesquisas como o Ibope, o Datafolha, o próprio DataPoder360 desta casa.

O uso de informações pessoais por quaisquer entes, públicos ou privados, só poderá ocorrer caso haja autorização expressa dos interessados, em que se explicite a finalidade do tratamento dos dados, ou se houver legislação específica que o exija.

A nova lei cria uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados que se responsabilizará pela administração de controvérsias, descumprimentos de seus dispositivos e outros temas, bem como pela formulação de uma política nacional sobre a questão. Como no Brasil cada Estado e cada município é um ente federado autônomo, é impossível que o escopo dessa Autoridade abranja tais esferas. Haverá necessidade de criar órgãos para a administração do assunto em todo Estado e município.

As manifestações públicas a respeito do PL foram no mínimo positivas, quando não entusiásticas. O apoio incondicional é, contudo, equivocado. O texto propicia retrocesso no acesso a informação, além de abrir terreno para arbitrariedades de agentes públicos das três esferas.

O PL é mal concebido, entra em choque com outras leis, é todo-abrangente e, ao mesmo tempo, omisso em relação a temas cruciais.O primeiro destes reside em sua própria raiz: o que é “dado pessoal”? A resposta estaria no Inciso I do Artigo 5º, que define “dado pessoal” como “informação relacionada à pessoa natural identificada ou identificável”. Mas o que, exatamente, isso significa? Sem nos aventurar por aquilo que seria “identificável”, fiquemos com a pessoa identificada.

Meramente o nome de alguém não pode constituir identificação. Por exemplo, existem no Brasil ao menos nove indivíduos portadores de CPF com o nome completo “Claudio Weber”. Ora, conforme a definição do Artigo 5º, dizer que Claudio Weber sofre de diabetes, digamos, não configura divulgação de algum dado pessoal, pois nenhuma pessoa foi, de fato, identificada.

A identificação de alguém perante o Estado –na verdade perante a sociedade, da qual o Estado é simplesmente um sucedâneo– só pode ser provida pelo registro em algum cadastro: certidão de nascimento, CPF, registro geral de identidade, passaporte, título eleitoral, carteira de motorista, número do sistema de assistência social e outros. Há também dezenas de identificações obrigatórias que são de responsabilidade de entes privados: conselhos profissionais de todo tipo, como OAB, de engenheiros, de médicos, de farmacêuticos, de psicólogos e por aí vai.

Pergunta: dados cadastrais são dados pessoais? Logicamente não podem ser, pois se por definição dados pessoais decorrem de identificação (necessariamente cadastral, não podendo ser outra) de pessoas, então só se poderia identificar alguém por meio da violação de sua privacidade, o que constituiria um círculo vicioso.

A despeito disso, aliás, um equívoco comum, compartilhado por inúmeras pessoas, incluindo-se em particular advogados, promotores públicos e magistrados, é o de que números cadastrais constituiriam dados sigilosos.

Não. É só por meio desses números que se pode identificar alguém univocamente. Sua divulgação (incluindo-se os emitidos por Conselhos profissionais) é regulamentada por diferentes leis, em inúmeros casos sendo obrigatoriamente publicada. Assim, a construção de um empreendimento imobiliário ou obra pública é obrigatoriamente acompanhada da identificação do(s) engenheiro(s) responsável(is), o que ocorre pela exposição explícita do nome e do número do CREA de cada qual, em cartaz afixado na obra para exame público.

Candidatos a eleições são listados pelo Tribunal Superior Eleitoral com título de eleitor e CPF. Ações judiciais (que são públicas) listam advogados com seus respectivos registros da OAB; interessados (como réus) são identificados por CPF e carteira de identidade.

Os CPFs de donos de aeronavaes são publicados pela Agência Nacional de Aviação Civil. Há muitas outras instâncias de registros públicos em que o CPF ou outro número de cadastro é listado junto com os nomes das pessoas.

Caso a nova Autoridade Nacional não defina claramente, na política de proteção de dados que deverá desenhar, que números cadastrais não são “dados pessoais”, resultará um enorme retrocesso no acesso a informação de dados públicos.

O PL chega a entrar em contradição com a legislação existente. Por exemplo, o mesmo Artigo 5º estabelece que a filiação a organizações de caráter político constituiria dado pessoal. Ora, o Art. 19 da lei eleitoral (nº 9.096/1995) impõe o contrário: “o partido […] deverá remeter, aos juízes eleitorais, para arquivamento, publicação e cumprimento dos prazos de filiação partidária para efeito de candidatura a cargos eletivos, a relação dos nomes de todos os seus filiados, da qual constará a data de filiação, o número dos títulos eleitorais e das seções em que estão inscritos”. O TSE divulga tais listas (são mais de 22 milhões de registros, correspondentes a 18,5 milhões de pessoas – entre as quais inúmeros mortos dados como filiados regulares, o que revela um pouco do descaso que caracteriza a tutela da Justiça Eleitoral sobre os partidos, mas isso é outro assunto).

Como o Brasil é o Brasil, não é impossível imaginar que alguém arguirá que a nova legislação suplanta a anterior, com o resultado de que se omitirão os números de título eleitoral dos filiados – a exemplo do que já faz hoje a a Secretaria da Receita Federal em relação aos CPFs de sócios e administradores de empresas limitadas. A SRF publica a lista de pouco mais de 7 milhões de empresas (não são todas), somando 17,8 milhões de registros de pessoas físicas e jurídicas. Estas últimas são identificadas por seus nomes e CNPJs. As pessoas físicas, porém, só pelos nomes – o que, em desacordo com a obrigação legal de se identificarem os proprietários das sociedades limitadas, não os identifica de verdade, pois isso exigiria a publicação dos CPFs, coisa que a SRF olimpicamente despreza.

Uma das informações que mais atrai a atenção do público em eleições são processos a que políticos respondem na Justiça, em tribunais de Contas etc. Quem coleta tais dados são a imprensa e ONGs.

Caso não se tomem medidas preventivas explícitas, com absoluta certeza os políticos protestarão contra a divulgação de tais dados, advogados patrocinarão tais ações dizendo que os direitos de privacidade de seus clientes estarão sendo violados e juízes lhes darão ganho de causa.

Para quem acredita que o acesso a informação é valorizado ao menos nos altos escalões da República, certa vez um ministro do STF negou a uma rádio de São Paulo a veiculação de spots da ONG Transparência Brasil que apregoavam “Não vote em ladrão”. Argumento do ministro: a mensagem constituiria discriminação eleitoral, ferindo os direitos dos ladrões.

Isso é o Brasil.

 

Claudio W. Abramo é Bacharel em matemática (USP) e mestre em filosofia da ciência (Unicamp). Trabalhou como jornalista em diversos órgãos de comunicação: Abril Cultural, revista IstoÉ, Folha de S. Paulo, Gazeta Mercantil, Valor Econômico. Durante cerca de quinze anos foi diretor-executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção. Fundou e co-dirige a dados.org (www.dados.org), organização não-governamental dedicada à coleta, organização e análise de informações detidas pelo poder público.

Tags: