Opinião – Ponte sobre o abismo

01/10/2018 15:22

”Há sempre aqueles que são capazes, mas   há   também   aqueles  que são capazes de tudo, como dizia, com sutil ironia, o chanceler Azeredo da Silveira (…)”

Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Campanha é campanha e governo é governo. Até porque os governos terminam e o país e sua população permanecem. O povo brasileiro não aguenta mais maluquices e irresponsabilidades no comando da nação. Ninguém governa para uma seita ou um grupo de fiéis. Governa-se a Nação. Do mesmo modo que Donald  Trump aceitou apoio de lobbies e de forças estrangeiras para consolidar sua campanha à presidência dos Estados Unidos, muitas candidaturas mundo afora também aceitam esse tipo de interferência por supostas empatias ideológicas.  É o caso emblemático  do apoio sempre emprestado pelos concílios em  Havana aos possíveis aliados da esquerda latino-americana.

O Brasil não precisa desse tipo de apoios, que só faz apequenar e fragilizar a soberania nacional. Liberais também sempre procuram apoios externos mesmerizados pelas montanhas de dinheiro dos poderosos lobbies do capitalismo internacional. A indústria automobilística, por exemplo, foi o motor da criação do Mercosul que, até hoje, aprisiona o país numa União Aduaneira que permitiu um mercado privilegiado para manufaturados brasileiros e importantes saldo comerciais nas nossas exportações para o bloco, mas, ao mesmo tempo, estabeleceu uma zona de conforto que não promove a competitividade internacional de nossas estagnadas indústrias do século passado.

Tudo indica que o Partido dos Trabalhadores ou o novo cavaleiro verde e amarelo, Jair Messias Bolsonaro, poderão vir a  assumir a presidência do Brasil em janeiro de 2019. Caso a política tradicional das elites brasileiras seja derrotada  em outubro próximo, com a  dissolução progressiva do PSDB e principais aliados ,e Bolsonaro, como ele próprio diz, Deus querendo, venha a ser  o novo Presidente, deverá abandonar, para o bem do país, a ideia  de Jericó, de estabelecer aliança incondicional com Israel, entregando os interesses nacionais do Brasil ao templo de Salomão,  da mesma forma que o PT entregou nossos interesses nacionais às diretrizes e princípios do Foro de São Paulo.

Visitar Taiwan, que faz política externa comprando o apoio de pequenas ilhas caribenhas, é possível. O que não é possível é trocar a parceria estratégica do Brasil com a China e o  Brics,  por uma parceria com uma ilha condenada a desaparecer do mapa mundial.

Claro que Israel é um país importante, com grandes contribuições a dar ao Brasil e ao mundo, e que a nossa parcela étnica da população de origem judaica merece a mesma distinção de todas as outras etnias. Afinal, somos todos brasileiros e não nos dividimos em estamentos religiosos, judeu, muçulmano, cristã, budista ou umbandista. Religião é assunto de fé e não de política, como querem fazer crer o Estado Islâmico e os judeus ortodoxos,  minoritários mas poderosos na política externa do Estado de Israel e dos Estados Unidos da América. O Brasil não pode ser joguete de nenhuma potência ou grupo de pressão externa. Por isso, se eleito, Bolsonaro terá de superar suas hipotéticas preferencias individuais para assumir a chefia de Estado e, com ela, os interesses nacionais, que não é uma expressão vazia, mas que significa o interesse de todos. De todas as partes que compõem o mosaico da sociedade brasileira, merecedoras de todos os direitos inatos à cidadania brasileira.

Da mesma forma, não poderá brincar com fogo, água e desastres, abandonando a última  esperança  de sobrevivência da sociedade humana no planeta terra, com o abandono da defesa imprescindível do acordo mundial sobre alterações climáticas. O acordo deve servir aos interesses do Brasil e deve, não   apenas ser   levado  a  sério mas, principalmente, contar com nossa liderança diplomática e científica no seu processo de execução. O dinheiro dos poderosos lobbies internacionais do óleo e gás não podem corromper o futuro do Brasil.

Falando  sério, eventualmente  Presidente, Bolsonaro, como militar de carreira, tem compromisso com os destinos da Pátria e certamente assumirá uma postura de governo cautelosa e firme, no plano externo, esse descampado, onde rondam os abutres na caça à carne fresca dos cordeiros da ingenuidade.  A   raposa sabe encantar o corvo para comer o seu queijo.  Para isso,   não poderá deixar de aproveitar os melhores, e as melhores tradições do Itamaraty, para ajudar   na travessia da ponte sobre  o abismo dos oceanos armados,   e na navegação  das águas turbulentas e traiçoeiras da política internacional. Saberá, como militar que é, distinguir entre mercenários e aqueles que dedicam o melhor de si à construção, ainda em andamento, da nossa nação. Há sempre aqueles que são capazes, mas   há   também   aqueles  que são capazes de tudo, como dizia, com sutil ironia, o chanceler Azeredo da Silveira, quando levou à frente a sua atualização da Política Externa Independente do Brasil, no seu pragmatismo ecumênico e responsável.

 

 

 

Por Miguel Gustavo de Paiva Torres é diplomata.