08/11/2018 11:18
”Pode querer ser ‘ministro da Lava Jato (…) preferirá a condição de ungido pela virtude, o homem acima do bem e do mal destinado a livrar o país da corrupção e da dissolução moral”
É quase irrelevante, beirando o bizantino, o debate que mobilizou a parcela oposicionista do Brasil após o juiz Sérgio Moro aceitar o convite do presidente eleito, Jair Bolsonaro: com a ida ao novo governo, o algoz do ex-presidente Lula contradisse sua promessa pretérita de não entrar na política? Atalho para o narcisismo autovitimizador caro a muitos lulo-petistas e simpatizantes em geral, declarando o convite e o aceite como provas da conspiração da Lava-Jato contra o PT e contra Lula.
Considero uma linha irrelevante de debate porque inútil. Primeiro, o cargo que Moro ocupará a partir de 1º de janeiro é técnico e sua função pode ser exercida ou não por um político; segundo, como escreveu a jornalista Miriam Leitão: “alguém ir para o governo não significa que virou 1 político. Inúmeras pessoas entram e saem e não viram políticos”.
É 1 debate bizantino porque desnecessário. Ou alguém que pertence à banda crítica à Lava-Jato desconhece as travessuras políticas protagonizadas por Moro durante o seu reinado na operação de Curitiba? O futuro ex-juiz sempre agiu movido a cálculo político. Mais do que isso, viu-se como 1 político-herói.
Em seus atos, gestos, declarações, sentenças e até mesmo silêncios calculados, dirige-se à plateia, não à Justiça e aos réus, e enxerga seus destinatários como eleitores, seguidores, fãs, e seus críticos como adversários de sua causa. E, se juízes fazem Justiça, heróis –sabemos– fazem justiçamento.
Assim é o futuro ex-juiz Sérgio Moro desde sempre. Aquele que, de modo ilegal, contra a Constituição (como reconheceria mais tarde o Supremo Tribunal Federal), autorizou a gravação e vazou conversa da ex-presidente Dilma Rousseff com Lula, dando o impulso definitivo ao processo de impeachment em 2016.
Aquele que, agindo como magistrado, tornou públicos, a 6 dias do 1º turno da eleição, trechos da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci, ajudando a pavimentar a avenida que levou o seu futuro chefe ao Palácio do Planalto.
Antes, durante e depois, Moro foi e é também o político que ajudou a fazer da Lava-Jato um novo sistema político-judicial vigente no Brasil. Que tornou método sentenciar políticos de morte política antes mesmo de encerrar o processo e declará-los oficialmente culpados. Que, como tantos outros políticos, exalta a própria virtude (do bem), busca desmoralizar o adversário e define muitas de suas escolhas olhando para o eleitor (ou seguidores).
(Antes que as gralhas gritem, convém lembrar que a Lava-Jato condenou mais de 100 pessoas, entre políticos, empresários e operadores, puniu gente também do MDB e do PSDB e levou à prisão parlamentares de partidos que hoje estão indo para a base do governo Bolsonaro, como o PP. Exemplos que desmistificam tanto o suposto ataque exclusivo ao PT, como, no último exemplo, a prova da pureza anticorrupção do novo governo.)
A candura aparente do futuro ex-juiz contrata com a perversidade política de seus atos. É a marca da sua maldade –e, como ensinou Maquiavel, “a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela”.
Protegido pela mídia tradicional, acostumou-se a negar a política, praticando-a o tempo inteiro. Sua loquacidade é travestida de exaltação do bem geral. Seus gestos, calculadamente populistas, como quando se deixou fotografar chegando ao trabalho com uma sacola plástica branca com marmita do almoço.
Era 1 político disfarçado de magistrado ao dirigir-se ao Facebook para “transmitir um recado” sobre 1 interrogatório de Lula, falando a “muita gente que apoia a operação Lava Jato”. Procedimento comum a 1 juiz? Só a Moro. Em outro momento, usou 1 púlpito para, num discurso, dizer que “daqui a 10 anos” haverá melhores condições para o investidor estrangeiro (sim, no Brasil juiz faz discursos).
Então vamos combinar: Sérgio Moro é político muito antes de aceitar levar a toga para dentro do governo Bolsonaro.
No que chegamos ao ponto mais relevante: como ele vai conciliar-se com a agenda do novo presidente. Ou, como me disse 1 sábio amigo, como se comportará o Moroflex –o juiz implacável que dá lugar ao ministro do possível, a mutação da condição de cabo eleitoral à cegueira deliberada sobre o caixa 2 do futuro ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.
Sérgio Moro interferiu no processo eleitoral. Não necessariamente mudou o curso de sua rota, mas interferiu mesmo assim, agindo como 1 pistoleiro no faroeste em que se transformou a disputa presidencial. Feriu, e não apenas uma vez, a desejável neutralidade do Judiciário. Contribuiu para o abalo da já instável democracia brasileira.
Agora, como ministro, cumprirá um estágio probatório para uma eventual nomeação ao STF (Supremo Tribunal Federal), em 2020, e ingressou na política eleitoral para a sucessão presidencial de 2022. Pode ter trincado sua isenção de magistrado e os propósitos da Lava Jato, mas a história costuma ser escrita pelos vencedores. E, uma vez no poder, Moro se alia àqueles que escreverão a história. Jogo jogado, jogo ganho por ele até 2ª ordem.
Enquanto ajuda a reescrever a história, precisará lidar com as diferenças, temores e instabilidades do novo presidente. Como Bolsonaro, será obrigado a fazer algo de que nunca gostou: dar satisfações. Já que sempre se julgou moralmente acima dos demais, tratou toda e qualquer crítica como bobagem.
Dar satisfações, ser confrontado, responder a críticas e questionamentos constituem algo não exigido de super-heróis, mas certamente de quem aparece ombreado a Onyx Lorenzoni, Magno Malta e representantes do centrão. E, sobretudo, de quem coloca a carreira e a reputação num governo com integrantes que já fizeram ameaças sérias à democracia e 1 presidente recordista em declarações ofensivas às minorias.
Presidente a quem Moro classificou esta semana de “moderado”, “ponderado”, “sensato” e sobre o qual não paira “risco à democracia e ao Estado de Direito”.
O futuro ex-juiz e ministro foi bem-sucedido no primeiro teste, na paciente entrevista que concedeu a jornalistas na 3ª feira (6.nov.2018). Mas deixou abertos os imensos pontos de interrogação que pairam sobre o ponto mais relevante aqui –a sua conciliação com a agenda do novo governo. Esquivou-se de expor qualquer ideia sobre demarcação de terras indígenas, política de fronteiras, refugiados e outras pautas que dizem respeito ao Ministério da Justiça.
Pode ter agido assim por autoproteção, receio de opor-se ao pensamento de Bolsonaro e falta de tempo para tratar destes temas com o presidente eleito. Legítimo e prudente. Mas os mais céticos podem duvidar de sua capacidade de ser um ministro da Justiça: Moro corre o risco de querer ser exclusivamente o “ministro da Lava Jato”.
Entre ser ministro do possível e dos problemas complexos cotidianos que movem a pasta, preferirá a condição de ungido pela virtude, o homem acima do bem e do mal destinado a livrar o país da corrupção e da dissolução moral. Até descobrir que governo não foi feito para promover o paraíso, mas para impedir o inferno.
Por Rodrigo de Almeida, 42 anos, é jornalista e cientista político. Foi diretor de jornalismo do iG e secretário de Imprensa de Dilma. É autor de “À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff”. Escreve para o Poder360 semanalmente, às quintas-feiras.