Opinião – O avião e a alma que voa

31/07/2019 02:19

”Enquanto isso, fiquemos com a imagem do avião acidentado. Ele sepulta consigo mais do que as vidas ceifadas antes do tempo…”

Dia desses lia, absolutamente consternado, o noticiário alusivo à queda de um avião. Foram mais de 200 vidas perdidas. Seis países deixaram de lado suas diferenças e juntos tomaram as primeiras providências que o caso reclamava. Jornais de todo o mundo repercutiram o infeliz episódio de forma ampla e dramática, estampando em suas páginas as fotografias dos nacionais que pereceram.
Dia desses lia, absolutamente consternado, que o cigarro, e só ele, causou um bilhão de mortes no século XX, muito mais do que todas as guerras acontecidas naquele período. Só em 2010 o tabaco ceifou a vida de seis milhões de semelhantes nossos. Países não deixaram de lado suas diferenças para tomar as providências que o caso reclama, e poucos jornais o divulgaram de forma ampla e dramática.
Dia desses lia, absolutamente consternado, que a poluição do ar na cidade de São Paulo causou a morte de cem mil pessoas ao longo dos seis últimos anos. Descobri que quase 25% dos óbitos registrados nos países em desenvolvimento estão de alguma forma relacionados à poluição. Países não deixaram de lado suas diferenças para tomar as providências que o caso reclama, e poucos jornais o divulgaram de forma ampla e dramática.
Dia desses lia, absolutamente consternado, que um milhão de bebês morrem por ano nas primeiras 24 horas de vida, e que medidas simples evitariam ou reduziriam em muito este quadro. Países não deixaram de lado suas diferenças para tomar as providências que o caso reclama, e poucos jornais o divulgaram de forma ampla e dramática.
Dia desses lia, absolutamente consternado, um relatório da ONU noticiando que todos os dias morrem 22 mil pessoas no mundo devido a doenças transmitidas por água contaminada, bem como um outro texto indicando que a cada dia 20 crianças perdem suas vidas no Brasil por falta de esgoto sanitário – e 900 por hora pelo planeta afora. Países não deixaram de lado suas diferenças para tomar as providências que o caso reclama, e poucos jornais o divulgaram de forma ampla e dramática.
Dia desses lia, absolutamente consternado, um estudo da ONU segundo o qual a cada cinco segundos morre uma criança de fome sobre o solo do nosso tão rico planeta. Faça uma experiência e conte até cinco: um, dois, três, quatro, cinco – morreu outra. Países não deixaram de lado suas diferenças para tomar as providências que o caso reclama, e poucos jornais o divulgaram de forma ampla e dramática.
Dia desses lia, absolutamente consternado, um documento da Organização Mundial da Saúde demonstrando que o consumo de álcool é responsável por 2,3 milhões de mortes ocorridas no mundo a cada ano. Países não deixaram de lado suas diferenças para tomar as providências que o caso reclama, e poucos jornais o divulgaram de forma ampla e dramática.
Dia desses lia, absolutamente consternado, que a cada 30 segundos uma pessoa se suicida no mundo – e 20 outras quase morrem tentando. Constatou-se que o número de suicídios aumentou 60% nos últimos 50 anos. Países não deixaram de lado suas diferenças para tomar as providências que o caso reclama, e poucos jornais o divulgaram de forma ampla e dramática.
Enquanto isso, fiquemos com a imagem do avião acidentado. Ele sepulta consigo mais do que as vidas ceifadas antes do tempo, leva embora sob suas asas de aço mais do que nossas ilusões e fascínio pelas conquistas tecnológicas – muito mais do que tudo isso, ele carrega consigo, talvez, a alma de toda uma espécie.

Por Pedro Valls Feu Rosa é desembargador do Tribunal de Justiça do Espírito Santo

Tags: