Opinião – As bruxas de Ouagadougou

06/08/2019 15:32

”A responsabilidade maior pelos desvios impunes que infelicitam o Brasil não é das elites, mas do “Zé-Povinho” que não soube votar corretamente”

Dia desses li em um jornal africano uma matéria sobre as bruxas de Ouagadougou. Você já ouviu falar deste lugar? Trata-se da capital de Burkina Faso, um pequeno país encravado na África ocidental.

Segundo a reportagem, a perseguição às bruxas é rotineira principalmente nas áreas pobres situadas no entorno da capital. Uma vez identificadas, as bruxas podem ser torturadas, expulsas da região ou até mesmo mortas.

Fiquei curioso: como, afinal, uma bruxa pode ser identificada com segurança? Descobri que tudo é feito através de um ritual conhecido como “Siongo”. Nele, a vítima de uma bruxaria é estendida diante de dois jovens, de tal forma que seus pés apontem para a cabeça deles.

Estes jovens, então, entram em uma espécie de transe, passam a ser guiados pelos espíritos dos mortos e em poucos minutos pronunciam o veredito, sumário e inapelável, sobre a natureza da pessoa acusada – se bruxa ou não.

Que não se pense ser esta prática uma exceção. Absolutamente. Trata-se da regra. Basta dizer que inacreditáveis dois terços das crianças de rua da capital lá estão por terem sido expulsas dos locais onde residiam devido a acusações de bruxaria.

De igual forma, não se imagine que a crença na bruxaria esteja restrita às camadas sociais mais vulneráveis. Em absoluto. Li, a propósito, as declarações de um membro do Parlamento local, dando conta de ter, com uma pistola, expulsado uma bruxa do local onde residia.

Fiquei curioso: afinal de contas, o que fazem essas bruxas? Aliás, bruxas e bruxinhas, pois que crianças são rotineiramente assim classificadas. Após poucos minutos de pesquisa e leitura, a resposta encontrada chocou.

O fato é que simplesmente não existe desgraça ou morte natural nas comunidades de Burkina Faso. Por exemplo: as pessoas não falecem por conta de velhice, acidentes ou doenças – há que haver um responsável para cada morte, não importa sua natureza.

Dentro desta filosofia de vida, ninguém morre de câncer – houve, isto sim, a ação de alguma bruxa introduzindo a doença no corpo da vítima. Acidentes? Que nada! Tudo obra de bruxaria. E as pessoas viveriam para sempre, não fosse a ação funesta das praticantes de magia negra. Trata-se de uma lógica implacável: a cada mal há que corresponder uma punição, para que a paz volte a reinar no meio da sociedade.

Diante desta lógica terrível, preocupei-me em verificar qual o perfil social das bruxas, sobre cujos ombros repousa a imensa responsabilidade de absorver todos os males que afligem suas comunidades. E descobri serem praticamente todas miseráveis, pertencentes às classes mais carentes e desamparadas daquele país. Parece incrível, mas não consegui localizar episódios de bruxas ricas ou poderosas – a responsabilidade sobre os males do país recaem inexoravelmente sobre os fracos, e só sobre estes.

Diante desta constatação lembrei-me de uma conhecida piada segundo a qual, quando da Criação, o Brasil teria sido privilegiado com riquezas imensas e poupado dos desastres naturais que atingem outros países para compensar o “Zé-Povinho” que seria colocado aqui. De tão repetida, esta piada virou verdade aceita: a culpa pelo atraso do Brasil é do “Zé-Povinho”.

Exemplifico com a corrupção: curiosamente, a responsabilidade maior pelos desvios impunes que infelicitam o Brasil não é das elites, mas do “Zé-Povinho” que “não soube votar corretamente”. Pois é. Cheguei a uma conclusão: o “Zé-Povinho” é a versão brasileira das bruxas de Ouagadougou.

Por Pedro Valls Feu Rosa é desembargador do Tribunal de Justiça do Espírito Santo.

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