18/10/2019 17:05
”Capitalismo não aumentou a fome. Nem o fez a agricultura moderna. Sonho da autonomia alimentar é impossível na vasta maioria dos países”
É importante, sob diversos ângulos, o artigo assinado pelo líder maior (e fundador) do MST, o economista João Pedro Stédile. Seja do ponto de vista do desenvolvimento econômico ou, então, do objetivo de promover o bem-estar da sociedade, seria insensato discordar, quando o autor destaca a necessidade de instituir políticas de Estado que promovam (e assegurem) a segurança alimentar de suas populações. Desde meados da década de 1990, ante as pressões do processo de democratização, o Brasil avançou fortemente em políticas sociais entendidas como “progressistas”, da escolarização ao apoio creditício aos pequenos produtores, do SUS aos nascentes esforços para ampliar o acesso à moradia. Não podemos retroceder no campo social.
Mas seus argumentos enfatizam também as transformações históricas e, por esse foco, é preciso entender que o mundo em geral, e a produção agropecuária, em particular (e, portanto, a oferta de alimentos), mudaram radicalmente nesse último período de 30 a 40 anos. Entramos numa nova fase, substancialmente diferente dos tempos tão difíceis relatados por Josué de Castro. Em nossos dias, por exemplo, como rápida ilustração, cada vez mais a população (brasileira e mundial) sofre de obesidade suas inúmeras doenças a ela associadas, como diabetes, hipertensão e outras. É epidemia que exige a ação governamental em diversos campos, que não apenas o “acesso à alimentação”. Além disso, especialmente no caso brasileiro, o texto do dirigente dos sem-terra também ignora a gigantesca revolução produtiva e tecnológica operada nas regiões rurais brasileiras. Deixamos de ser o país de um só produto (café), na década de 1970, quando chegamos até mesmo a importar feijão, para nos tornarmos uma potência mundial na produção de alimentos. Hoje o Brasil exporta para quase todos os países e, adicionalmente, a pauta de exportações é fortemente diversificada, com inúmeros produtos de origem animal e vegetal.
Por essas e muitas outras razões, insistir em velhas narrativas como a “revolução verde” ou atribuir a culpa pela fome aos “transgênicos”, não é ignorância, pois Stédile tem formação acadêmica e uma riquíssima experiência pessoal. É, isto sim, a viseira ideológica da qual não consegue se desvencilhar, notada em seu texto, quando elogia 1 regime como o chinês, onde não vigora o sonhado socialismo de Stédile, mas um capitalismo de Estado, ou um “capitalismo político”, nas palavras de um especialista em capitalismo, Branko Milanovic, em seu livro “Capitalism, alone”.
“Menos, João Pedro!”, é o que deveria ser aconselhado ao admirável líder dos sem-terra. O que intitulamos de “agricultura” é a mais antiga das operações humanas e, ao longo dos tempos, foi se adaptando a diferentes biomas, regimes climáticos ou ecossistemas. No passado, a possibilidade de alguma forma de uniformização produtiva e tecnológica, exatamente em face desta variabilidade imensa, era impossível e não existia uma “receita” aplicável a tanta diversidade natural. Tudo foi sendo modificado, contudo, com a Revolução Industrial, especialmente a partir de meados do século 19, pois descobertas e invenções, além da sabedoria dos agricultores testando diferentes práticas, gradualmente foram domando os desafios da natureza, a qual foi se curvando ao crescente domínio dos humanos. Assim, uma particularidade desafiadora desta atividade, ou seja, a incerteza da produção agropecuária, aos poucos passou a ser reduzida, ampliando as chances de expandir a oferta de alimentos. Foi assim que nasceu nos anos quarenta do século passado o chamado “modelo tecnológico da agricultura moderna”, combinando as contribuições de pesquisadores e agricultores norte-americanos, mas também europeus. A maior parte da química agrícola, por exemplo, foi contribuição de cientistas europeus. Lembrando também que a antiga União Soviética copiou o mesmo modelo tecnológico da “agricultura moderna”, a sua diferença principal sendo somente a forma de propriedade, que era estatal ou coletiva.
Da mesma forma, a China também vem adotando gradualmente o mesmo modelo tecnológico que atualmente comanda praticamente toda a agropecuária mundial. Naquele país, as restrições são de outra ordem, mas não a tecnologia. Em face das diferenças de renda e o tamanho da população, existem restrições políticas à movimentação de famílias rurais, usualmente muito pobres, na direção das cidades. Ou seja, a China não está apoiando nada diferente em termos tecnológicos, mas apenas impedindo maciças migrações rurais que, se fossem liberadas sem freios, produziriam o caos nas cidades chinesas.
São visíveis os avanços tecnológicos em direção a uma agricultura mais sustentável em função do contínuo avanço do conhecimento e da ciência. Um dos maiores avanços da agricultura moderna em direção à sustentabilidade são, exatamente, os organismos geneticamente modificados, os “transgênicos”. A soja, o algodão e o milho transgênicos evitam, justamente, o uso de agrotóxicos e esses não matam “todos os seres vivos”. E os transgênicos não são produtos exclusivos das empresas transnacionais. A Embrapa e outras instituições públicas de pesquisa em todo o mundo igualmente desenvolvem transgênicos, como é o caso do feijão resistente ao vírus transmitido pela mosca branca. Também nesse tema, como em quase todo o artigo, Stédile, infelizmente, se rende primeiramente à ideologia e, menos, aos fatos.
Por fim, o autor defende que em cada país “os agricultores produzam os alimentos necessários para a sua sociedade”. Defender a tese de que cada país deve produzir o seu próprio alimento e, portanto, manter alguma autonomia alimentar, de fato, não é um problema e nem representa objetivo ilógico, embora impossível, na prática, na vasta maioria dos países. O que é inaceitável é a falsificação dos dados da realidade em nome de suas teses, que são apenas ideológicas. Afirmar que aumentou a fome no mundo por causa do capitalismo ou da agricultura moderna (e, portanto, da intensificação científica) é uma aberrante falsificação da história.
Por fim, é preciso lembrar, que a China é o maior importador da nossa soja. É um país que tem segurança alimentar, mas não tem autonomia alimentar. Como contextualizar essa questão na tese defendida pelo líder do MST? Por isso, mais uma vez: “menos, João Pedro!”.
Por Maria Thereza Pedroso é engenheira agrônoma pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (1993), mestre em desenvolvimento sustentável pela UnB (2000) e doutora em Ciências Sociais pela UnB (2017)