Opinião – Como o Estado e as empresas criam pequenos infernos

26/10/2019 19:10

”Temos uma queda pela complicação (…) De registrar BO em delegacia a resolver algum problema em repartição pública. Tudo é difícil, demorado e confuso”

No ano passado, levei meu filho para vacinar contra a febre amarela (então uma emergência) em um posto de saúde da rede pública. Por um erro qualquer no sistema, sua carteirinha do SUS não era reconhecida. A funcionária responsável pela atividade me disse que não era trabalho dela corrigir o problema.

Em vez disso, me direcionou para a fila única do galpão ao lado, que estava lotado de pessoas doentes aguardando não pela vacina, mas por um médico. Boa parte delas em pé, passando calor. Sabe sofrimento concentrado? A fila era, por baixo, de três a quatro horas.

Confesso que deu vontade de desistir. Resolvi arriscar e me dirigir a outro posto, a alguns quilômetros dali. No novo posto, o atendimento também era confuso, mas a fila era menor e foi possível, finalmente, vacinar meu filho.

Esse é um exemplo banal de como o Estado pode transformar a vida do cidadão em pequenos infernos, em que tudo é difícil de realizar ou resolver. Poderia citar muitos outros casos pessoais, como a dificuldade para desbloquear um cartão de transporte ou para registrar uma simples reclamação na ouvidoria de um órgão público. Não preciso chover no molhado; o leitor conhece bem o drama.

Recentemente, economistas comportamentais, como o Nobel Richard Thaler, passaram a chamar esses aborrecimentos de sludge (lodo), que surge em processos e serviços mal desenhados, atulhados de burocracia estéril.

No Brasil, convenhamos, pragmatismo definitivamente não é um valor nacional. Temos uma queda pela complicação, que aparece em quase todos os pontos de contato entre o Estado e os indivíduos. De registrar BO em delegacia a resolver algum problema em repartição pública. Tudo é difícil, demorado e confuso.

Empreender por aqui é lidar não apenas com burocracias hostis, mas também com um oceano de normas que, em conjunto, são impossíveis de cumprir na prática. Uma empresa no Brasil gasta, em média, quase 2.000 horas apenas para dar conta de suas obrigações tributárias, um número que é várias vezes maior do que países mais normais. É uma insanidade.

O Estado tem também enorme dificuldade de lidar com os objetivos conflitantes que fazem parte do desenho de políticas públicas. Ainda na área tributária, é comum que o objetivo de aumentar a arrecadação a qualquer custo passe na frente de todos os demais, como a simplificação do sistema e a equidade. Um caso emblemático, que eu discuti neste espaço, é a chamada substituição tributária do ICMS.

Na essência, o Estado trata os cidadãos (e as empresas) como supercomputadores e não como os humanos que somos, imperfeitos e com recursos de atenção e conhecimento limitados.

Como se burocracia pouca fosse bobagem, temos ainda uma proliferação de normas inócuas ou sem pé nem cabeça. Exemplo das primeiras é exigir que o comerciante disponibilize exemplares do código de defesa do consumidor. Exemplo das segundas é obrigar restaurantes a fornecer água de torneira ou supermercados a disponibilizar lupas para seus clientes.

NÃO É SÓ UM PROBLEMA CULTURAL

Empresas também criam aborrecimentos em série para seus clientes. Pense na complicação em resgatar viagens aéreas com milhas, nas barreiras criadas para reparar produtos defeituosos e na dificuldade em resolver questões que deveriam ser simples (como cancelamento de um serviço) com empresas de telefonia e TV a cabo. O pior é que muito disso é proposital.

Mas muito também é causado por modelos de gestão inadequados, que fragmentam a experiência do consumidor em vários departamentos, cada qual procurando gerar seus próprios indicadores bonitos, mesmo que isso produza pequenos infernos para quem usa o serviço ou produto. De que adianta o call center bater a meta de tempo de atendimento se ali só se lê script e ninguém consegue resolver nada?

Nada mais sintomático do que uma empresa ter um departamento de “qualidade” para tentar corrigir barbeiragens depois do leite derramado.

Cumprir obrigações tributárias, registrar um BO, resolver um problema com o banco, tudo isso deveria ser fácil como pedir comida por aplicativo. Mesmo no Brasil.

No contexto público, precisamos de uma revolução cultural, que atinja quem cria leis e normas. Abandonemos a pretensão de criar um mundo perfeito no papel. Na prática, o efeito é o inverso.

 

 

 

Por Hamilton Carvalho, 47 anos, estuda comportamento humano e sistemas sociais complexos. É doutor em Administração pela FEA-USP, mestre em Administração pela mesma instituição, membro da System Dynamics Society e da Behavioral Science & Policy Association

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