Opinião – Rosa Weber, receba as flores que lhe dou

30/10/2019 16:54

”Tomei a mais grata “rasteira” de minha vida, semana passada, ao ler o voto da ministra, contrário à possibilidade de prisão após julgamento em 2ª instância”

Quando se noticiou, em 2011, a aposentadoria da ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie, Dilma Rousseff deixou claro que pretendia nomear outra mulher à Corte Constitucional. Eram fortes candidatas à vaga: Nancy Andrighi e Maria Thereza de Assis Moura, do Superior Tribunal de Justiça, e Maria Elizabeth, do Superior Tribunal Militar. A escolhida, entretanto, foi Rosa Weber, que vinha do Tribunal Superior do Trabalho.

Não posso dizer que apoiei empossá-la. Ao fim de sua sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, consignei que, embora tivesse reputação ilibada, Rosa não demonstrou outro requisito da Carta Política de 88 para ingressar no mais importante Tribunal do país: o notável saber jurídico.

Embora aprovada, votei pela sua rejeição.

Minha desconfiança foi reforçada quando soube que ela convidara Sergio Moro, aquele que “viola sempre o sistema acusatório” – palavras da Procuradora da República Monique Checker, divulgadas pelo The Intercept – para assessorá-la no Supremo, sendo seu esteio, sobretudo no julgamento do mensalão (AP 470/STF).

Diante da certeza cristalina sobre os posicionamentos dos demais 10 ministros, não me seduziu a expectativa criada sobre a mudança da ótica da ministra Rosa Weber, às vésperas do julgamento da constitucionalidade do art. 283 do CPP, embora o tenha sinalizado no julgamento do Habeas Corpus de Lula (na ocasião, disse ser contra a prisão em 2ª instância, mas que não era a sede adequada para reverter o entendimento de 2016). Mantive-me afincado em minhas convicções sobre a impossibilidade de que ela trouxesse algo a sublimar tão importante momento da história recente de nossa democracia.

A visita de Moro a Weber nos dias que antecederam a votação, a fim de fazer lobby pelo desrespeito à Carta Maior e pelo mau uso do Código Processual Penal para atender seus fetiches pessoais, praticamente solidificou os “pré-conceitos” que construí a partir da sabatina no Senado.

No entanto, tomei a mais grata “rasteira” de minha vida, semana passada, ao ler o voto da ministra, contrário à possibilidade de prisão após julgamento em 2ª instância.

Tal voto revelou uma julgadora destemida na proteção do Estado Democrático de Direito. Bem lidas, suas lições poderão, de fato, iluminar os julgamentos vindouros, pois desmorona o casuísmo, imputando àquele que julga as responsabilidades que lhe recaem.

Salientou que a Constituição é absolutamente simples e clara – embora alguns teimem em dizer o contrário –, ao dispor que, para prender definitivamente, é necessário o trânsito em julgado.

Sobre os textos jurídicos, por exemplo, lembra a Ministra o seu caráter vinculante nos seguintes dizeres:

“O texto normativo carrega em si uma intenção significativa que, se não tem o condão de imobilizar o intérprete, fixa as balizas para o seu movimento, jamais podendo ser desprezada por ele. Minha predileção por Cervantes não me autoriza a identificar como Dom Quixote um ator que, não obstante vestindo armadura, portando lança e acompanhado de um escudeiro, sobe ao palco para representar o Henrique V exsurgido da pena do bardo elisabetano.”

Acerca da importância do texto constitucional, bem como da abertura da Corte para ouvir as variadas vozes que, juntas, constroem o direito brasileiro, ensinou:

“Devemos respeitar o texto da Constituição, a partir do consenso pragmático formado pela comunidade dos falantes e leitores da língua portuguesa, que dá significado às suas palavras, e observada a tecnicidade dos conceitos jurídicos. As palavras da Constituição não são poesia, não são, como diria Dante, “versi strani” 25, acessíveis somente ao iniciado detentor de esotéricas ferramentas teóricas. Como bem aponta Umberto Eco, o intérprete não pode se impor como um ‘Übermensch’ que realmente entende a verdade (…) que o autor não sabia”

No que concerne à presunção de inocência, após proceder a impecável síntese histórica do instituto, pontuou:

“A Constituição de 1988 não assegura uma presunção de inocência meramente principiológica. Ainda que não o esgote, ela delimita o âmbito semântico do conceito legal de culpa, para fins de condenação criminal, na ordem jurídica por ela estabelecida. E o faz ao afirmar categoricamente que a culpa supõe o trânsito em julgado. Em outras palavras, a presunção de inocência, a assegurada nos instrumentos internacionais, lida segundo a ótica da Constituição, perdura, íntegra, enquanto não transitar em julgado a decisão condenatória. E não se está aqui a confundir culpa com prisão, considerada a distinção entre a prisão pena e as prisões cautelares.”

Em trecho que assenta a importância do legislador constituinte, em clara referência aos que querem reescrever a Carta Magna (ou dar-lhe seus sentidos mais subjetivos), consignou que

“Gostemos ou não, esta é a escolha político-civilizatória manifestada pelo Poder Constituinte, e não reconhecê-la importa reescrever a Constituição para que ela espelhe o que gostaríamos que dissesse, em vez de a observarmos. O Supremo Tribunal Federal é o guardião do texto constitucional, não o seu autor”.

Outro ponto que a Ministra discorre com pontual maestria:

“A sociedade reclama, e com razão, que processo penal ofereça uma resposta célere e efetiva. Tal exigência, no entanto, não pode ser atendida ao custo da supressão das garantias fundamentais asseguradas no Texto Magno, garantias estas lá encartadas para proteger do arbítrio e do abuso os membros dessa mesma sociedade.”

Sobre a impunidade, encerra seu voto com a lição:

“Malgrado fortes razões de índole social, ética e cultural amparem seriamente a necessidade de que sejam buscados desenhos institucionais e mecanismos jurídico-processuais cada vez mais aptos a responder, com eficiência, à exigência civilizatória que é o debelamento da impunidade, não há como, do ponto de vista normativo-constitucional vigente – cuja observância irrestrita também traduz em si mesma uma exigência civilizatória – , afastar a higidez de preceito que institui garantia, em favor do direito de defesa e da garantia da presunção de inocência, plenamente assimilável ao texto magno. Nas palavras do Justice Louis Brandeis, ‘no exercício desse elevado poder, devemos nos manter sempre em guarda, para não erigirmos nossos preconceitos em princípios jurídicos’.

Temos o poder-dever de invalidar leis cujos conteúdos sejam contrários à Constituição, mas não fomos investidos de autoridade para negar vigência à própria Constituição.”

Weber, com a postura adotada neste julgamento, em que asseverou a responsabilidade política do julgador, a necessidade de se respeitar os sentidos dos textos jurídicos, bem como a importância do Legislativo, afasta a tensão que desequilibra a independência dos poderes republicanos, devolvendo à política o papel de fazer as escolhas que conduzirão a sociedade brasileira e, ao povo, a soberania que lhe pertence.

Ajoelho-me no milho; Rosa é soberana do notável saber. Faz inveja a muitos que a subestimaram, como fiz. Leciona o Direito legislado e pede respeito a todos os poderes, especialmente ao Legislativo.

Faz jus ao nome. Como demonstrou gostar de música ao citar uma canção interpretada por sua conterrânea Elis Regina, lhe ofereço os versos de uma, simplíssima, que fez muito sucesso quando eu era criança: “Receba as flores que lhe dou”.

 

 

 

Por Demóstenes Torres, 58 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado

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