Opinião – STF e p cumprimento de pena após em 2º instância

31/10/2019 14:39

”Em toda cultura sabe-se que toda justiça humana é falível, mas sabe-se também que é imprescindível e que o objetivo final da justiça, mesmo com suas falhas, é o bem comum…”

A discussão desta semana do Supremo Tribunal Federal sobre a questão do cumprimento de pena após julgamento em segunda instância expõe alguns aspectos importantes. Embora esses aspectos não sejam percebidos e compreendidos claramente pela grande maioria das pessoas, esses aspectos podem trazer consequências sociais danosas no médio e longo prazos para a nação brasileira. Entre esses aspectos valem ser destacados os que se seguem.

1 – São raros os casos de países que tenham tantas instâncias recursais quanto no sistema judiciário brasileiro. Em 193 países membros da ONU o cumprimento de pena começa a partir do julgamento em primeira ou segunda instâncias. Esse fato por si só mostra que o principal foco de preocupação do sistema judiciário brasileira não é a defesa e a proteção dos injuriados e ofendidos, mas sim a proteção sob todas as formas, do acusado, isto é, daquele que é identificado como o causador da injúria e das suas consequências. Aquele que sofre uma agressão, é vitimado por um motorista embriagado, ou perde sua propriedade (ou parte dela) para um “empreendedor” que tem boas amizades no poder, pode não ter certeza absoluta sobre o autor, mas tem plena ciência da injúria e dos prejuízos que sofreu e, por essa razão, seu sentimento não poderia ser outro que não o desejo de justiça. Quando esse sentimento não é satisfeito, ainda que parcialmente, é inevitável que outros sentimentos tomem seu lugar: de um lado, o sentimento de descrédito no sistema judiciário e, de outro, a sensação de que a justiça deveria ser buscada por outros meios. Essa foi a motivação para a conhecida máxima de Rui Barbosa: “Justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada”. A alegação daqueles que operam o sistema jurídico brasileiro é que a justiça é lenta e têm tantas instâncias para que não se prejudique injustamente um acusado, no entanto, para aquele que sofreu a injúria (indivíduo, organização, ou o povo em geral), geralmente os danos decorrentes da demora são irreparáveis.

2 – Um segunda aspecto refere-se ao fato de que a quantidade de instâncias de recurso retrata a desigualdade social que tem se agravado no Brasil. Fala-se em distribuição injusta da renda, significando que em alguns países a renda se concentra em uma pequena parcela da população. A pesquisa Desigualdade Mundial 2018, conduzida por vários pesquisadores notáveis exibe dados que coincidem com outras pesquisas conduzidas por pesquisadores e instituições brasileiras. A pesquisa mostra que o Brasil está no topo da desigualdade mundial, ao concentrar nas mãos de 1% da população mais rica 27,8% da renda nacional, superando até mesmo países como Arábia Saudita, conhecida pelos “sheiks” proprietários dos poços de petróleo. A existência de tantas instâncias e de tantos mecanismos para suspender e protelar a execução da justiça, na essência, significa que os mais ricos estão acima da lei. Em cada instância os processos judiciais levam anos, custam caro, e tendem a se acumular já que permanecem por mais tempo em tramitação até que sejam concluídos e arquivados. Por mais graves que tenham sido os delitos, o resultado inevitável é que boa parte dos processos acabam por prescrever, deixando o transgressor impune. Nesse quadro, o sistema judicial torna-se um dos retratos mais perfeitos das injustiças decorrentes das desigualdades sociais no País. Somente os mais ricos têm condições de se beneficiar das prerrogativas concedidas aos delituosos. Somente os mais ricos podem recorrer de decisões judiciais desde a primeira instância até o “transitado em julgado”, representado pelo Supremo Tribunal Federal, que deveria julgar apenas questões constitucionais, mas que acabam por julgar todo tipo de ação civil e penal atendendo às demandas de talentosos e custosos trabalhos advocatícios. Além disso, somente os mais ricos podem se beneficiar de mecanismos como “liminares”, “habeas corpus”, “direito de responder em liberdade”, etc. etc.

3 – Um terceiro aspecto que vale a pena chamar a atenção e que, de certa forma, explica esse quadro do sistema jurídico brasileiro é a dimensão moral do sistema judiciário. Em todo o mundo, tanto pelo papel que desempenham na sociedade quanto pelo nível de conhecimentos requeridos para o desempenho de suas funções, os magistrados constituem parte importante da elite da nação. Julgar e impor penalidades a seus semelhantes significa ter em suas mãos poder e prerrogativas que os torna distintos de seus semelhantes. A toga é a representação material dessa particular condição adquirida pelo magistrado não apenas por meio de um concurso público, mas por meio de anos de estudo e de preparação moral que, presumivelmente, deve colocá-lo em condições de julgar seus semelhantes. Essa condição exige do magistrado uma postura moral muito mais crítica e mais refinada do que a de seus semelhantes. Para um magistrado, conhecimentos sobre leis, códigos e sistemas jurídicos são tão importantes quanto a prática de virtudes como moderação, sensatez, senso do bem comum, integridade, coragem e compaixão. Em outras palavras, em princípio, um magistrado, em virtude de seu papel e de suas funções, deveria se aproximar, tanto quanto possível, daqueles que, desde a antiguidade, nas mais diferentes culturas, são chamados de sábios, isto é, reunir uma combinação muito rara de conhecimentos e de virtudes. Infelizmente as discussões e as manifestações do STF, especialmente em torno da questão do cumprimento de pena após a condenação em segunda instância, têm servido apenas para revelar a preocupação com sutilezas e filigranas jurídicas e muito pouco com as virtudes necessárias a um magistrado.

Na realidade, tanta preocupação com a necessidade de tantas instâncias e recursos para atenuar e protelar a aplicação da lei pode revelar também falta de coragem, de um lado, e uma grande presunção, de outro. Falta de coragem para contrariar interesses poderosos e a presunção de que é possível ter um sistema jurídico isento de erros de julgamento. Em toda cultura sabe-se que toda justiça humana é falível, mas sabe-se também que é imprescindível e que o objetivo final da justiça, mesmo com suas falhas, é o bem comum e não a satisfação de egos e de teorias jurídicas por vezes mais preocupadas com sutilezas conceituais do que com a condição humana carente de bons referenciais morais e de consolo para suas fraquezas.

 

 

 

Por Eiiti Sato possui graduação em Economia pela Fundação Armando Álvares Penteado, mestrado em Relações Internacionais

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