Opinião – Bolsonaro virou superpresidente

26/03/2020 00:09

Presidente retaliou a Folha e Grupo Globo. Ninguém sabe até onde o governo pode ir

Onze meses depois de tomar posse, Jair Bolsonaro é o mais poderoso presidente da história recente. Nem Fernando Henrique Cardoso na febre consumista do início do Plano Real nem Luiz Inácio Lula da Silva, no auge consumista de 2010, chegaram perto da profundidade do poder do atual presidente. E ainda faltam três anos e 11 meses de mandato.

Corporação mais rebelde e inquieta, os procuradores aceitaram sem um pio a nomeação de um chefe que se recusou a participar da eleição interna da PGR. A cúpula da Receita Federal foi demitida sem um protesto. O superintendente da Polícia Federal precisou de uma humilhante intervenção do ministro Sergio Moro para não ser defenestrado.

O próprio Moro, o brasileiro mais popular desde 2015, sobrevive no cargo depois de rebaixado a posição de bajulador do presidente. Os generais do Exército, muitos dos quais iniciaram o ano supondo representar o novo Poder Moderador, foram enquadrados na linha de comando.

Em estado de falência, parte preponderante da mídia tenta por todos os meios aderir ao governo. A querosene das redes sociais acabou. As ruas só estão cheias de torcedores do Flamengo. Ninguém protesta.

Paulo Guedes, o fiador de Bolsonaro junto à turma do dinheiro, atravessa o seu pior momento junto ao terceiro andar do Palácio do Planalto. Fracassou na tentativa de recriar a CPMF e contra sua vontade viu o governo liberal abrir uma nova estatal, a NAV Brasil, para acolher funcionários da Infraero.

Agora, Guedes precisou de um argumento intelectualmente desonesto para tentar explicar por que o governo não vai enviar uma proposta de reforma administrativa. Guedes inventou possíveis protestos a la Chile para não enviar a proposta, quando a verdade é mais constrangedora para ele: Bolsonaro não quer. Não acredita? Lei a entrevista do ministro da Secretaria de Governo,  general Luiz Eduardo Ramos ao Estadão.

De acordo com o jornal O Globo, Guedes prepara mudanças na sua equipe. É uma tentativa de recuperar a aprovação do presidente, que agora, além do seu posto Ipiranga, também ouve opiniões econômicas do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes, do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e do presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães.

O coração da política Bolsonaro é o confronto permanente. Não há dia que o presidente não abra um novo front contra oposicionistas, jornais, ONGs, qualquer um que lhe pareça adversário. É um governo que não aceita “apoio crítico”, apenas a adesão absoluta. É um governo que se impõe pelo medo, seja pela perseguição real ou via a militância nas redes sociais. Não há espaço para isentões no governo Bolsonaro.

O presidente retaliou a Folha de S.Paulo e o Grupo Globo por não aderirem incondicionalmente ao governo. Atacar a mídia é o primeiro capítulo do manual da escalada autoritária, mas ganha um doce quem citar um empresário, desses que pontificam o liberalismo, que se levantou para defender a liberdade de imprensa e de crítica. Ninguém sabe até o governo Bolsonaro pode ir. O nome disso é medo.

Essa agressividade permitiu a Bolsonaro conseguir em tempo recorde um controle sobre o chamado “Estado profundo”, a burocracia que faz o governo andar. É fato que muitos procuradores, policiais federais e auditores já eram bolsonaristas na campanha, mas é notável que continuem apoiadores fervorosos mesmo com sua independência funcional em risco.

O superpoder de Bolsonaro sobre a máquina lhe dá uma base sólida contra a sua maior Nêmesis, a possibilidade de um impeachment. Bolsonaro não tem competência para articular com o Congresso, e o resultado só não é pior porque Bolsonaro tem o privilégio de ter como presidente da Câmara um Rodrigo Maia e não um Eduardo Cunha. Foi também por esse medo que o capitão Bolsonaro rebaixou o general Hamilton Mourão a ser (também ele) um “vice-presidente decorativo”.

É quase inevitável assistir empresários menosprezando o presidente. “Bronco” é uma definição costumeira para o capitão. Um banqueiro bilionário paulista arrancou gargalhadas dos assessores ao relatar o encontro com o presidente no qual, segundo ele, o capitão parecia não entender uma palavra do que estava sendo dita. As conversas revelam o mesmo elitismo usado contra Luiz Inácio Lula da Silva.

A oposição não faz melhor. Em diversas entrevistas, Lula confundiu Bolsonaro com Fernando Collor, como se o novo presidente fosse um genérico do seu adversário de 1989. Embora eleito em boa medida pelo medo do que Lula faria na presidência, Collor não dominava uma massa de seguidores.

Ele era um instrumento do antipetismo, não o seu líder –como é o caso do atual presidente. Bolsonaro não apenas incorpora a figura do último obstáculo para impedir a volta do PT. Ele avança e incorpora ao discurso da sua tropa antiesquerdista novos elementos, como a desconsideração pelos pesos e contrapesos representados pelo Supremo, Congresso e imprensa, um conservadorismo moral e religioso pré-Vaticano II e um visão onírica sobre o Regime Militar.

Sem entender a nova correlação de forças, Lula, Luciano Huck, João Doria, João Amoêdo ou qualquer outro eventual candidato da oposição irá falar apenas para os seus. O discurso Zé-com-Zé, como se diz na política.

Para avançar sobre os que votaram em Bolsonaro e hoje estão arrependidos em medidas variadas é preciso entender as expectativas desses eleitores e o poder que o presidente tem para controlar as atenções dos brasileiros. Nesses onze meses, o País parou para discutir tuítes, tentar entender discursos, acompanhar as paranoias e decifrar para onde o presidente ruma. Quando foi preso, quase 600 dias atrás, Lula havia trinta anos era o centro da política, em torno da qual tudo girava. E foi solto quando o polo magnético não é mais ele, mas Bolsonaro. O superBolsonaro.

 

 

 

 

Por Thomas Traumann, 52 anos, é jornalista, consultor de comunicação e autor do livro “O Pior Emprego do Mundo”, sobre ministros da Fazenda e crises econômicas. Trabalhou nas redações da Folha de S. Paulo, Veja e Época, foi diretor das empresas de comunicação corporativa Llorente&Cuenca e FSB, porta-voz e ministro de Comunicação Social do governo Dilma Rousseff e pesquisador de políticas públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Dapp).

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