Opinião – Capítulo tecnológico do confronto EUA-China vai perdurar

26/03/2020 00:11

”Órgão proibiu que operadoras usem fundos do governo para comprar equipamentos da Huawei, podendo assim, sofrer novas sanções. Novela ainda tende a ser longa”

O governo Trump vem impondo restrições sobre o acesso a tecnologias por firmas de telecomunicações chinesas. Por que e quais são as consequências?

A Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos proibiu que operadoras usem fundos do governo para comprar equipamentos da Huawei e da ZTE. Outras agências governamentais deverão adotar medidas semelhantes.

Esse é apenas o episódio mais recente de 1 aperto gradual que o governo Trump vem dando sobre a gigante chinesa de telecomunicações Huawei, hoje o maior fornecedor mundial de equipamentos de telecomunicações e o 2º maior fabricante de telefones. Só perde para a Samsung e ganha até da Apple.

A preocupação anunciada pelos Estados Unidos, compartilhada por outros países, seria a possibilidade de uso desses equipamentos para espionagem pela China, até pelas relações de cama e mesa que a Huawei tem com o Partido Comunista chinês. Cama, mesa e conta bancária, pois o governo chinês pôs algumas dezenas de bilhões de dólares na empresa. De quebra, estão contentes os “gaviões” do establishment nos EUA que desejam a contenção tecnológica da rival China.

O aperto inclui restrições de acesso a mercados e a tecnologia para todo o conjunto de subsidiárias do grupo Huawei, assim como para a empresa ZTE. Executivos da Huawei recentemente admitiram que as sanções norte-americanas estão impactando negativamente a empresa, pois conseguiram substituir equipamentos norte-americanos, mas não os serviços digitais da Google. A empresa vem desenvolvendo seu próprio sistema operacional –o “Harmony”– mas está longe de chegar lá.

Os desafios da Huawei são emblemáticos daqueles enfrentados pela China em seu atual estágio de desenvolvimento. A exuberante história de ascensão econômica da China nas últimas décadas é a de uma subida na escada de valor agregado, na escala tecnológica, nas cadeias de valor. Subida que teve o acesso a mercados externos para seus produtos e o acesso a tecnologias disponíveis como elementos fundamentais.

No início, houve a fase da produção intensiva em mão-de-obra barata e menos qualificada, empregando tecnologias padronizadas plenamente acessíveis, trazidas pelo investimento direto por firmas de fora. Taxas de investimento acima de 50% do PIB foram possíveis por conta da absorção de exportações chinesas pelo resto do mundo.

Em seguida veio o estágio da subida de degraus tecnologicamente mais sofisticados da escada, para o que a China recorreu a transferências forçadas por quem queria investir lá ou ao uso de tecnologias sem o reconhecimento da propriedade intelectual.

É importante realçar que a China fez também seu dever de casa em termos de investimentos em educação, infraestrutura etc. para absorver criativamente essa tecnologia.

Agora, chegou ao topo da escada, onde o conteúdo próprio tem que ser localmente desenvolvido, não estando disponível mediante simples adaptação criativa de tecnologias já existentes.

Esse momento atual já havia sido antevisto pelos chineses. Em 2011, eu estive no Great Hall of People em Pequim, quando eu era 1 dos vice-presidentes do Banco Mundial e fui enviado como representante na celebração dos 10 anos da entrada da China na OMC. Lembro do então presidente chinês, Hu Jintao, fazendo 1 discurso destacando justamente aqueles desafios para a China chegar ao topo da escada. A ascensão tecnológica se daria como parte de 1 “re-balanceamento” da economia chinesa, com o consumo doméstico e os serviços crescendo em relação aos investimentos e à exportação de manufaturas.

O fechamento dos mercados e do acesso tecnológico pelos EUA se acrescenta às tarifas sobre as compras de produtos chineses e seu efeito conjunto tem sido a aceleração da transformação que se visualizava no discurso do presidente Hu Jintao. Antes mesmo do governo Trump, já se colocava a tendência de deslocamento para fora da China de vários segmentos intensivos em mão-de-obra menos qualificada e agora menos cara em países como Vietnam, Camboja, Etiópia e outros.

Nos últimos 2 anos, com a guerra iniciada pelos EUA, investidores de Taiwan, Japão e EUA já aceleraram o translado de linhas de montagem e de contratos de fornecimento em suas cadeias de valor nos setores de informática, eletrônica e comunicações da China para Vietnam, Tailândia, Indonésia e, em menor grau, o México. O salto para o topo da escada tecnológica é que parece estar sendo exigido muito antes do tempo esperado…

Vale observar que o presidente Hu Jintao, no discurso que assisti, também mencionou a necessidade de 1 reequilíbrio nas relações entre o setor privado e o setor público, com o 1º assumindo a liderança em áreas antes dominadas pelo 2º. De modo geral, esse reequilíbrio tem sido deixado de lado por seu sucessor, presidente Xi Jinping.

Isso significa dizer que o atual aperto do governo dos Estados Unidos sobre Huawei e outras é apenas 1 capítulo de uma novela que vai demorar em seu desdobramento… em algum momento passando pelo Brasil.

 

 

 

Por Otaviano Canuto, 62 anos, é ex-diretor executivo do Banco Mundial. Foi vice-presidente do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento e diretor-executivo do FMI. Trabalhou no Ministério da Fazenda e foi professor na USP e na Unicamp

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