Análise – Antes e depois da ‘pandemia’

20/04/2020 00:54

”O estado democrático debilitado, “escancara portas” para o autoritarismo e ações impunes de especuladores, que farejam oportunidades, conspirando contra o interesse público”

Hoje não se pode mais cantar o “mundo maravilhoso” de Louis Armstrong, com exaltação às cores do céu, das árvores, do arco-íris, ao beijo abençoado do dia e a escuridão sagrada da noite.

De repente, o risco de uma “contaminação muitas vezes fatal” atinge, de forma igualitária, a parcela dos 1% mais ricos do mundo e 60% da população mundial, que vive na miséria absoluta. De que valeram os avanços tecnológicos e a riqueza acumulada, se o “dom da vida” – presente de Deus – está sob ameaça?

Quando o “cinto aperta”, vozes em coro pedem socorro aos governos. Não se pode deixar de registrar gestos de solidariedade da população em geral. Em Natal, mobilização de empresários garantiu a doação de vários respiradores.

Entretanto, a realidade mostra a necessidade de mudanças futuras, de forma a dotar o Estado de meios para enfrentar calamidades públicas.  Aí surge o debate sobre o tipo de Estado, que garanta ao cidadão os seus direitos mínimos. O principal deles é o direito à saúde.

Está provada a fragilidade do modelo apocalíptico de “capitalismo”, com o “deus mercado”, face a ausência de poder regulador, amedrontando a própria atividade econômica, sob pretextos diversos.

A consequência natural, após a pandemia, será o surgimento de um “novo capitalismo”, alicerçado no “Estado necessário” (nem mínimo, nem máximo), capaz de numa crise como a atual exercer as suas funções de controle social, salvando vidas, mantendo empregos e ajudando os mais pobres.

Se olharmos a história econômica, a crise de 1995 teria sido a oportunidade de mudanças na ordem econômica e social, quando o mundo enfrentou a recessão dos “mercados emergentes”, com uma série de ataques especulativos aos sistemas monetários, atingindo até economias sólidas como os “tigres asiáticos”.

Já àquela altura existiam sinais e evidencias, de que a globalização se transformava em “financeirização”, gerando instabilidade às economias, vulnerabilidade às populações e o aumento do fosso da desigualdade social, epidemia tão grave quanto o “coronavirus”.

Os governos, ao invés de aproveitarem a ocasião e reformularem as práticas vigentes, optaram por abrir os cofres e salvar os mais ricos tudo em nome da eficiência fiscal (monetarismo). Como diz o provérbio árabe, “não se recupera a oportunidade perdida”.

No Brasil, em valores da época, a União injetou nada menos do que R$ 16 bilhões de dinheiro público em bancos privados (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional). Foram esquecidos os direitos e gastos sociais, quando as duas ações teriam que ser simultâneas.

Em 2008, na maior crise do capitalismo, desde a grande depressão em 1929, repetiram-se os mesmos erros. Os governos “salvaram” os bancos (socorro de cerca de 30 trilhões de dólares) e os clientes, com suas casas hipotecadas, foram morar “em baixo das pontes”. O reflexo dessa crise no Brasil levou o Ibovespa a uma baixa de 41.22%.

A esperança é que os equívocos cometidos no passado ensejem reflexões e abram perspectivas de reformulações futuras, sempre preservadas as liberdades, a qualquer custo. Não se poderá perder a oportunidade de redistribuir a renda e riqueza.

Afinal, o nosso país convive com estatísticas alarmantes: 10% dos mais pobres gastam 32% de sua renda em tributos, enquanto os 10% mais ricos gastam apenas 21%. São 45 milhões de brasileiros pobres, que ganham menos de US$ 5 por dia.

A preocupação com a redução da desigualdade (epicentro de todo o problema) não gera ganhos aos acionistas, mas incentiva a empresa assumir compromisso social, além de assegurar a “dignidade da pessoa humana”, o que aliás é princípio da Constituição (art. 1°, III). Tal ótica, não significará igualdade de classes, negativa do direito ao lucro legítimo, ou desestimulo ao empreendedorismo.

Para que se alcance tais objetivos, não haverá como apostar nos extremismos – de direita ou de esquerda -, que trazem consigo o perigo do surgimento de “redentores”, “salvadores da pátria”, que poluem a democracia e restringem as liberdades.

O estado democrático debilitado, “escancara portas” para o autoritarismo e ações impunes de especuladores, que farejam oportunidades, conspirando contra o interesse público.

Deus queira, que o economista português Manoel Alberto Maçães tenha razão, ao dizer que “o mundo parecerá muito diferente do outro lado do túnel em que acabamos de entrar”. Resta apenas saber, se aprenderemos a lição da pandemia!

 

 

 

ney lopesPor Ney Lopes – jornalista, advogado, ex-deputado federal; ex-presidente do Parlamento Latino-Americano, procurador federal – [email protected] – blogdoneylopes.com.br

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