Análise – Comentários à recomendação 63/2020 do CNJ na perspectiva do administrador judicial

29/04/2020 09:54

Diante de potencial crise de insolvência das empresas, decorrente dos impactos econômicos da pandemia Covid-19, o Conselho Nacional de Justiça que, dentre outras atribuições, visa disciplinar e orientar a atuação da magistratura, publicou a resolução No. 63/2020 cujo objeto é “Recomenda aos Juízos com competência para o julgamento de ações de recuperação empresarial e falência adoção de medidas para mitigação do impacto decorrente das medidas de combate à contaminação pelo novo coronavírus causador da Covid-19.”Buscando uniformização da prestação jurisdicional dos magistrados no âmbito da insolvência, a Recomendação traz, entre outras medias, orientações de procedimento para os casos de empresas que já entraram com pedido de recuperação judicial e encontram-se em diversas fases do concurso, a fim de otimizar resultados no período excepcional de pandemia.

Dentre as diretrizes destacamos: aceleração do levantamento de Mandados Eletrônicos, com propósito de ajudar a manter a liquidez da economia (artigo 1º); suspensão de assembleias gerais de credores presenciais, cumprindo as recomendações sanitárias, com prorrogação do stay period, (artigos 2º e 3º); possibilidade de apresentação de plano de recuperação modificativo pelas devedoras, devido à deterioração das condições econômicas decorrente das atuais circunstâncias (artigo 4º).

O foco desta análise será o parágrafo único do artigo 2º, que autoriza a realização de Assembleia Geral de Credores virtual, sendo a aferição da sua viabilidade a encargo do administrador judicial; o artigo 4º, que dispõe da possibilidade de apresentação de plano de recuperação modificativo para deliberação em Assembleia Geral de Credores; e do artigo 5º, que recomenda aos juízos determinarem que os administradores judiciais realizem a fiscalização das atividades da recuperanda de forma remota.

No primeiro tópico, que trata da AGC virtual, note que o texto da orientação do Conselho é para que os juízos, primeiramente autorizem sua realização, o que pressupõe um requerimento antecedente. Na inteligência do artigo 22 da LFR, o requerente dessa autorização seria o administrador judicial, já que a letra “g” do inciso I desse artigo traz o seguinte ditame: “g) requerer ao juiz convocação da assembleia geral de credores nos casos previstos nesta Lei ou quando entender necessária sua ouvida para tomada de decisões.” G.n.

Disposto como está, o parágrafo único do artigo 2º da Recomendação dá margem para interpretar que, num primeiro ato, o administrador judicial requer autorização do juízo para realização da AGC virtual e, caso autorizada, o auxiliar verifica sua possibilidade, o que pode restar contraproducente se o longa manus do juiz avaliar ali à frente inviável a reunião remota dos credores.

Sendo assim, um cuidado interpretativo nesse ponto é necessário, de maneira que, numa ordem lógica e produtiva de atos do administrador judicial, o sequenciamento adequado ao nosso ver seria, primeiramente, o AJ avaliar a possibilidade de realização da AGC virtual e, sendo viável, requerer autorização do juízo para realiza-la.

O artigo 4º da Recomendação sob análise é transparente quando patenteia que o ato de pleitear um plano modificativo ao vigente cabe à devedora. Mas há no texto a expressão ‘em prazo razoável’ que, em nossa interpretação, não evidencia se esse prazo refere-se à própria autorização, à apresentação do plano modificativo, ou mesmo à realização da AGC, ficando aí a dúvida.

A autorização do juízo para apresentação do plano modificativo carece da comprovação, por parte da recuperanda, de que esta teve suas finanças afetadas pela crise financeira decorrente da pandemia Covid-19. Como é inerente ao próprio rito da RJ, o juízo convocará o administrador judicial para manifestar-se a respeito desse pedido, seguido pelo parecer ministerial. Neste aspecto, chamo a atenção dos administradores judiciais para a sua responsabilidade na apuração das informações que validem a comprovação da deterioração financeira da devedora pelos efeitos da pandemia.

Destarte, análise cuidadosa das demonstrações financeiras da recuperanda, com seus resultados trazidos na referida manifestação do administrador judicial, entendemos imprescindível para que o juízo tome a decisão mais acertada.

De fato, essa manifestação do AJ para ajudar a balizar a decisão do juízo em relação a admissibilidade do plano modificativo, se traduzirá verdadeiramente num relatório circunstancial, que envolve apurar se houve involução econômico-financeira que sustente o pedido de um plano de recuperação modificativo, sem prejuízo, anote-se, para avaliação do auxiliar da Justiça, de acordo com o caso concreto, se apenas a suspensão temporária do adimplemento das parcelas do PRJ vigente não seria suficiente o bastante para a situação de momento. Até porque, como se verá adiante, pela força do diploma, apresentação de um plano modificativo requer realização de assembleia e esta, pela própria Recomendação, só poderá ocorrer na forma virtual, nem sempre viável.

A instrução dada no artigo 5º da Recomendação, para que os juízos determinem que os administradores judiciais continuem a fiscalizar e a produzir relatórios, inerentes às atividades das recuperandas de maneira remota, com toda vênia, não deve prosperar com absolutismo, mas com todo o relativismo que o ambiente atual requer. Isto porque existem processos de recuperação judicial em vários espectros da atividade econômica. Desde setores considerados essenciais, e que portanto permanecem em atividade plena, a outros que estão fechados por força de decretos lavrados em diferentes instâncias federativas.

Desse modo, são possíveis situações em que simplesmente não haverá quem abasteça ou municie os administradores judiciais com informações mínimas de que necessitam para que confeccionem seus relatórios. E haverá o meio termo, isto é, o quadro de realidade em que a empresa funciona, mas seu contador terceirizado não, impedindo assim o acesso do AJ aos documentos contábeis da empresa, imprescindíveis para a produção dos respectivos relatórios de atividade.

Resta por fim fazer a análise combinatória dos artigos 2º e 4º da Recomendação em comento. Da mescla interpretativa desses dois artigos surge incerteza relevante, senão vejamos: no artigo 2º, a redação do seu parágrafo único diz que, verificada a urgência da necessidade de realização de uma AGC, o juízo deverá autoriza-la, ficando atribuído ao administrador judicial a verificação da possibilidade de ser realizada virtualmente. Já no artigo 4º, recomenda que os juízos podem autorizar a devedora que esteja comprovadamente incapacitada de cumprir o plano vigente, devido aos efeitos econômicos da pandemia, a apresentar um plano de recuperação modificativo, a ser submetido a uma nova assembleia de credores.

Ora, nas circunstâncias de momento, não haverá situação mais urgente para uma devedora que sua incapacidade de cumprir o plano anteriormente apresentado, ainda que o parágrafo único do artigo 4º preconize a relativização do artigo 73, inc. IV da LFR. Então, nos termos no artigo 4º da Recomendação, teria direito a recuperanda a requerer em juízo a apresentação de um plano modificativo, a ser levado para deliberação em assembleia. À vista disso, o previsto nesse artigo leva diretamente para o parágrafo único do artigo 2º.

Ocorre porém, que o parágrafo único do artigo 2º, impõe ao administrador judicial a incumbência de aferir se é possível ou não a realização da assembleia exigida pelo artigo 4º, esta necessariamente tendo que ser, na exegese do parágrafo único do artigo 2º, uma assembleia virtual, que poderá restar inviável se assim o administrador judicial concluir, no que constatamos, resulta num impasse, hipótese, sem demérito, passível de ocorrência, mas não previsto pelo colendo CNJ ao elaborar a Recomendação.

Da análise detalhada do conteúdo da Recomendação 63/2020 do Conselho Nacional de Justiça, sob a óptica de atuação dos administradores judiciais, apresentaram-se, pelo nosso escrutínio, as constatações acima elencadas. Contudo sem desmerecimento, pelo contrário, nos regozija assistir rápida e necessária atuação daquele Conselho, nas questões do Direito Insolvencial em momento crítico de nossa história.

 

 

 

Por Kaike Rachid Maia, 50, Economista, Administrador Judicial, Especialista em Finanças

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