Análise – O valor de cada um e a inversão de valores de todos nós

12/05/2020 00:13

”Inversão de valores se imiscuiu na sociedade a ponto de passar despercebida. O quanto vale, hoje, um enfermeiro? Seres humanos valem mais do que salário; divagações ressurgem no isolamento”

No meu worst-seller “Eudemonia” (e peço aqui perdão aos meus dois leitores pela repetição) eu conto uma história fictícia que é verdade pra grande parte do mundo. A personagem Lola, amiga da heroína, cresceu e estudou com um objetivo: ser advogada e trabalhar com o Innocence Project, uma organização que defende pessoas injustamente condenadas à morte. Defender os inocentes sempre foi seu motor, seu sonho, sua realização.

Mas Lola acaba tendo uma filha, e tudo muda. Atolada em dívidas, e com mais dívidas previstas para a criação da menina, Lola decide trabalhar como publicitária e ganhar dinheiro. Com sorte, ela imagina, sua filha vai ter condições de estudar nas melhores escolas, vai fazer faculdade, e vai poder realizar o seu próprio sonho. Quem sabe até o mesmo sonho ao qual a mãe teve que renunciar.

A Lola não sabe, porque eu não contei pra ela, mas sua filha também vai ter filhos, e vai deixar seu sonho pra eles, e eles vão repassar essa herança para seus próprios filhos, e os filhos dos filhos, numa cadeia interminável de desejos abortados.

Antes de eu continuar, um caveat: não desmereço a criação de filhos. Ao contrário. Considero a natureza a lei mais sábia. Filhos não são apenas a penhora dos sonhos, mas são também a realização de outros, uma tautologia biológica que dá vida a quem à vida lhes deu, o imperativo que se auto-justifica, uma roda que movemos e que move a todos nós, de ratos a pessoas, de baratas a elefantes. Mas quando olhamos pra trás nesse caminho que tantas vezes se traça sozinho, que sonhos foram largados na estrada? Quais dos nossos projetos para o mundo foram reduzidos à manutenção da nossa própria sobrevivência?

A existência, essa oportunidade infinita para a liberdade, está cada vez mais programada para a servidão. As jaulas nos aguardam em todo lugar. Jovens entram na faculdade com um anseio, e saem de lá com uma obrigação.

Nos Estados Unidos, por exemplo, em 2020 o débito estudantil totalizou US$ 1,6 trilhão. Formandos de curso superior levam uma média de dez anos para pagar a dívida, às vezes até 19 anos. No país onde o capitalismo se gaba de permitir a livre escolha, aqueles jovens vão sair da faculdade com poder de escolha bem reduzido, a aspiração de vida substituída por pragmatismo, a missão sublime esmagada pelo punho pesado da subsistência. Isso, claro, se eles conseguirem chegar até lá com uma aspiração nobre.

Se a Lola do meu livro fosse brasileira, ela poderia ter sido a criadora de uma campanha publicitária feita aqui, nessa terra de abundância, um comercial de TV real que mostra uma criança com uma tesoura do Mickey provocando as infelizes que carecem da mesma sorte ao repetir incessantemente “Eu tenho, você não tem”.

Se bem-sucedida, a publicidade de Lola plantaria nas crianças uma semente engendrada para germinar uma árvore que dá poucos frutos, mas consome muitos. Em vez de contribuir com a soltura de inocentes, Lola estaria contribuindo para a cadeia interminável do consumo destrambelhado, onde inventamos necessidades para poder depois suprimi-las.

Defensores da sociedade de consumo americana gostam de dizer que ela representa a essência do poder de escolha – infinitos tipos de cereais, brinquedos, roupas, carros, esmaltes, águas. Quer pintar a parede de branco? Mas que branco? Casca de ovo? Floco de neve? Mármore? Nuvem? Pena de ganso? As opções são intermináveis. Mas as chances de infelicidade também são.

Psicólogos e economistas comportamentais (como Barry Schwartz) conduziram estudos que sugerem que um maior número de escolhas não resulta em maior felicidade – às vezes exatamente o contrário. Elizabeth Dunn e Michael Norton também mostram que dinheiro não necessariamente traz felicidade – nem manda buscar. Ele funciona melhor quando o usamos em favor de outras pessoas, ou quando serve para comprar experiências, mais do que coisas; lembranças, mais do que objetos.

Ouvi de um casal de amigos que a partir da quarentena provocada pela covid eles estão tendo uma nova visão das babás dos seus filhos. Confinados com as crianças, tendo que dar alegria, amor, carinho, paciência, entretenimento, de manhã até a noite, sem o direito de ficarem cansados ou desatentos, os dois estão se dando conta de que o valor de um trabalho não é necessariamente quanto tempo e dinheiro foi investido naquela formação, nem quantas pessoas estão à procura daquela mesma vaga, mas quanto aquele trabalho dá de volta ao mundo –e quão difícil seria substituí-lo pelas melhores máquinas, os mais avançados robôs. Mas financeiramente, quanto vale uma babá? Quantos brinquedos na estante custam vários meses do seu salário?

Para muitos, uma babá vale o piso da sua categoria, aquele lugar mais perto do chão onde paga-se a menor quantia possível para um serviço cujo valor é inestimável. Assim é com profissionais que agora estão morrendo ao cuidar de todos nós – nós os pacientes, protegidos nos hospitais, enquanto eles são expostos às doenças sem o mínimo necessário para a batalha que lutam em nosso nome.

Essa inversão de valores se imiscuiu de tal maneira na vida real que ela nem parece invertida. Mas é. Quanto vale o homem que varre a nossa rua, recolhe o nosso lixo, e é mais importante na saúde de uma cidade do que a maioria de nós, que jogamos a bituca de cigarro no chão, entupindo os bueiros? Quanto vale um bombeiro e seu orgulho quase suicida em salvar uma vida que nunca antes lhe tocou? Quanto de fato vale um auxiliar de enfermeiro que hoje recebe 80 reais por turnos de 12 horas (R$ 1.046 por mês), arriscando sua vida por tão pouco e resguardando a de outros por quase nada?

Note –e esse ponto é importante– que a inversão de valores não vem só daqueles que desmerecem a grandeza de todas essas funções. Ela vem até, e às vezes principalmente, daqueles que fingem as defender. Quem aqui nunca ouviu algum auto-proclamado progressista criticando como “elitista” quem tem empregados domésticos? Para eles, esse emprego é “menor.” Conheço mulheres que limpam a casa com as próprias mãos e se orgulham de jamais sucumbir ao elitismo de ter uma empregada, mas que não veem problema nenhum em colecionar coisas – em geral sapatos e roupas que custam pequenas fortunas, de marcas que pagam a fração mais ínfima àqueles que os manufaturam.

Para esses apalermados econômicos, é uma tragédia que existam empregadas domésticas, motoristas, cozinheiros, jardineiros. Mas tente perguntar a esses trabalhadores o que eles acham dessa defesa? Perguntem a eles o que eles acham desse desmerecimento da honra de cada uma dessas funções? Por que tanta gente considera esses trabalhos vexaminosos, ofensivos o suficiente para não podermos nem usar o termo “empregada doméstica”? Quem de fato desvaloriza esses empregos? Desvaloriza não quem contrata, mas quem paga pouco.

Muitos brasileiros saem do Brasil depois de fazer curso superior e vivem tranquilamente como empregados da indústria de serviço lá fora. Não há nada de humilhante nisso. Nenhuma função é humilhante – apenas o salário que a remunera é. Em países com mercado de trabalho mais justo, um garçom faz dinheiro o suficiente para ele próprio ir a restaurantes, e ser também servido por outros garçons.

Não existe nada errado ou depreciativo com nenhuma profissão e trabalho honesto. Mas o número de empregos só diminui, e o número de pessoas procurando emprego só aumenta, e isso resulta em uma equação cada vez mais distorcida e injusta. A lei da oferta e da procura não funciona aqui. Aquele que tem fome não está exercendo um direito quando aceita um trabalho que o sub-remunera. Ele está sendo coagido por uma necessidade biológica. Sobre esse assunto, recomendo a leitura desse debate com Yanis Varoufakis.

Resumi alguns pontos nesses tweets aqui.

Mas não é só o suposto socialista Varoufakis que defende um piso de igualdade para todos (ele se qualifica como “no fundo, um liberal”). Num mundo onde empregos estão se tornando obsoletos, a ideia de que ninguém deveria viver sem o mínimo necessário já está sendo defendida nos cantões mais improváveis.

No dia 7 de abril, o fundador do Twitter, Jack Dorsey, fez uma promessa pública inédita na transparência, e mais inédita ainda na finalidade. Ele avisou que vai doar 1 bilhão de dólares – cerca de um terço da sua fortuna – para ajudar no combate à covid-19. A grande surpresa, contudo, foi que Dorsey também vai reservar parte dessa doação para a renda mínima universal – em outras palavras, aquilo que muitos criticaram quando era chamado de bolsa-família enquanto estupidamente ignoravam toda isenção de imposto concedida a grandes empresas.

Esse gesto, vindo de um capitalista, pode ser o começo de algo quase revolucionário onde se reconhece a verdade da frase que citei na coluna da semana passada, que ninguém deveria ter direito ao supérfluo enquanto alguém carecer do necessário. Até para libertários, que geralmente detestam a intervenção estatal, poucas soluções são mais inteligentes que essa. Quando o governo dá pouco dinheiro na mão de muitos indivíduos, em vez de muito dinheiro na mão de poucos, ele está evitando a acumulação indevida, a artificialidade econômica, o desequilíbrio do mercado, e o favorecimento tão danoso que distorce as relações de comércio. Acima de tudo, ele está permitindo a dispersão da prosperidade da forma mais orgânica e natural, que terá efeito em cadeia, também de forma espontânea onde os favorecidos serão aqueles escolhidos diretamente pelos clientes.

No outro extremo das reações em tempos de covid, o pai da cantora Lady Gaga (que faturou 39 milhões de dólares em 2019 e tem fortuna estimada em 275 milhões de dólares) lançou uma vaquinha. Ele pediu doações para pagar o salário dos funcionários do seu restaurante.

Nesses tempos de mundo em pausa, com a cabeça silenciosa o suficiente para ouvir o pensamento, algumas pessoas estão se permitindo divagações típicas do leito de morte, e em vida elas abrem os olhos e se perguntam: para que? São as respostas que vamos dar a essa pergunta que vão ajudar a redefinir o nosso mundo.

 

 

 

Por Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em ciências políticas e estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos.

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