20/05/2020 16:49
”Condições de caos, medo e urgência parecem perfeitas para meter a mão no dinheiro público. SP e Rio fazem compras suspeitas; falta de transparência facilita desvio”
Junto com a venda de máscaras e de álcool em gel, um dos negócios que mais prospera na pandemia é a corrupção. Os casos pipocam por todo o país, do Rio Grande do Sul a Tocantins, do Rio de Janeiro ao Mato Grosso, de São Paulo a Roraima. As condições de caos, medo e urgência parecem perfeitas para meter a mão no dinheiro público. O volume de recursos aumentou barbaramente. A necessidade de compras rápidas levou ao cancelamento das licitações. A transparência parece uma utopia de bons samaritanos. Os controles foram para o espaço. Há uma pergunta óbvia a ser feita: onde foi parar o país da Lava Jato? A maior operação anticorrupção do país –e uma das maiores do mundo– não deixou legado algum depois de 5 anos de ações espetaculares?
É claro que essas perguntas só poderão ser respondidas daqui a 5, 10 anos, quando será possível calcular com mais precisão o tamanho do estrago. Mas já há algumas pistas de que o velho negócio da propina continua igualzinho era antes da Lava Jato. O caso do Rio de Janeiro talvez seja o mais escandaloso do ponto de vista dos negócios públicos –e também o mais eficiente sob o enfoque do combate à corrupção, já que foi a força-tarefa da Lava Jato que apura as suspeitas.
A operação Favorito, realizada pela PF e pelo Ministério Público Federal, é uma espécie de enciclopédia da corrupção: tem de tudo entre os crimes, do uso de empresa fantasma a vazamento de planilhas do governo, de combinação de preços a suposta influência sobre o governador Wilson Witzel (PSC).
Um subsecretário de Saúde foi preso após assinar contratos para a compra de respiradores, sem licitação, no valor de R$ 1,8 bilhão. Dois dos oito detidos já haviam sido presos pela Lavo Jato, entre os quais o ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio, o ex-deputado Paulo Melo. O principal suspeito, o empresário Mário Peixoto, foi apontado por uma testemunha como alguém que tem “forte influência” sobre o governador do Rio. As empresas de Peixoto foram contratadas por Sérgio Cabral, ex-governador emedebista condenado a penas que atingem 282 anos de prisão. Witzel manteve os negócios quando assumiu no ano passado. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) vai decidir se investiga Witzel, que nega qualquer irregularidade.
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), também está sob investigação sob suspeita de fechar contratos de respiradores sem fazer licitação e com preço superfaturado. O negócio de R$ 550 milhões, o maior fechado pelo governo paulista durante a pandemia, teve um anúncio de 20 linhas no Diário Oficial. O preço médio de cada respirador importado China, de R$ 180 mil, é o triplo dos valores pagos habitualmente no país.
Corrupção em meio à pandemia é tão certa quanto as mortes em escala galáctica. É tão previsível que as principais entidades que combatem a prática lançaram guias para prevenir os desvios. As Nações Unidas fizeram isso, por meio de seu escritório de combate a drogas, a OCDE, organização que reúne os países mais ricos do mundo, e a Transparência Internacional, principal entidade anticorrupção do mundo. Treze países da América Latina que integram a Transparência Internacional elaboraram um guia para “reduzir riscos de corrupção e uso indevido de recursos extraordinários”.
Se os Estados do Rio e São Paulo seguissem uma regrinha desses manuais anticorrupção, teriam evitado alguns negócios suspeitos. A regra diz para os governos não comprarem de desconhecidos em épocas de calamidade; prefira os fornecedores habituais. No Rio, a compra de um dos lotes de respiradores foi feita por uma empresa de fachada que fica na casa da mãe de um dos presos, no subúrbio. Em São Paulo, o governo de Doria comprou 1,1 milhão de aventais descartáveis, no valor de R$ 14,1 milhões, de uma editora de livros que funciona numa casa em Itapevi, na Grande São Paulo. O capital da empresa é de R$ 20 mil. Quinze dias depois da compra e de uma denúncia ao Tribunal de Contas do Estado, Doria cancelou a compra como se não tivesse nada a ver com a barbaridade.
O mais espantoso nos casos do Rio e de São Paulo é a falta de transparência e o uso de figuras simplórias para fazer as compras suspeitas, como o de empresas que nem têm sede.
Uma das principais críticas à Lava Jato, feita por especialistas como Rubens Glazer, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, era que ações policiais da operação eram vistosas para aparecer na TV, mas seria melhor investir em medidas preventivas, cujos efeitos seriam duradouros.
O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) e seu ex-ministro Sergio Moro só adotou medidas regressivas no combate à corrupção. O uso que Bolsonaro fez do tema na campanha revelou-se um estelionato eleitoral, endossado silenciosamente por Moro. Os negócios feitos por Doria e Witzel dão razão aos críticos da Lava Jato. Sem medidas preventivas, a luta contra a corrupção não tem futuro. É como fogo de artifício em festa de São João: provoca espanto, faz barulho, mas depois some como fumaça.
Por Mario Cesar Carvalho, 59, é jornalista e escritor, autor dos livros “O Cigarro” e “Registro Geral”, sobre o Carandiru. Trabalhou na Folha de S.Paulo como repórter especial e editor do caderno Ilustrada.