20/05/2020 16:39
”Aonde o coronavírus nos levará? Teorias e previsões se proliferam”
As quatro meses de coronavírus, desde a contaminação europeia, criaram pelo menos 3 fases distintas de expressão das platitudes gerais. A primeira sensação foi do transbordo das convicções de certa intentona chinesa de laboratório. Na segunda, foi disseminado, especialmente pela sabedoria convencional da esquerda, o determinismo das lições históricas. Ato contínuo, vieram as abstrações edificantes a dar conta do surgimento de certa Nova Era. Todas a desenhar possibilidades de futuro ora terrificante, ora auspicioso. Nada irá se confirmar para o bem dos sobreviventes.
No primeiro caso, houve prevalência das teorias conspiratórias. O vírus seria obra da engenharia genética chinesa com a finalidade de moer os valores da sociedade ocidental e aniquilar as bases hierárquicas do imperialismo norte-americano. Sem disparar um tiro, a China havia deflagrado a Terceira Guerra Mundial com capacidade devastadora e sem encontrar nenhuma reação defensiva dos grandes poderes bélicos instalados. O yuan substituiria o dólar como expressão monetária global, o mandarim ocuparia a língua inglesa na tradução idiomática do planeta e a estética oriental suprimiria os padrões caucasianos.
Himalaia pôde ser visto de cidade indiana devido à redução da poluição durante pandemia
Sobre determinismo histórico, naturalmente vieram a público os únicos exemplos de pandemias arrasadoras como vetor de transformações extraordinárias no curso da civilização europeia, para o bem e para o mal. A primeira inominada bobagem do “ouvir dizer” foi a concepção de que a Peste Negra teria dado lugar ao Renascimento, como se os ratos fossem os responsáveis pelo fim da Idade Média. Assim, dezenas de décadas após seu ápice, do nada, os transmissores da peste bubônica teriam supremacia ao poder criativo de nova ordem econômica que trouxe a qualificação filosófica, tecnológica e artística de Giordano Bruno, Michel de Montaigne, Michelangelo, Leonardo da Vinci, Botticelli, Lutero e Cristóvão Colombo, entre tantos.
Na mesma linha, mas como enviada do mal, a Gripe Espanhola teria criado as condições históricas para surgimento do Nazi-Fascismo, em detrimento das razões objetivas dos arranjos desarrumados do Tratado de Versalhes. Assim, o coronavírus estaria pronto para reunir as condições transformadoras que acabariam com o capitalismo como meio de produção e traria bases de sociedade justa contra todos os males da incurável sede do ouro de Wall Street. Em escala local, a pandemia seria determinante ao impeachment do presidente Jair Bolsonaro e à reconquista redentora do lulopetismo.
Mais subjetiva e com adereços transcendentais, a fase das abstrações edificantes começou a criar corpo a partir dos peixes a navegar absolutos pelas águas transparentes dos canais de Veneza; o Himalaia, a se mostrar panorâmico desde as planícies indianas e a Amazônia, a se ver incólume das intervenções predatórias do homo sapiens degradandis.
Nesta Nova Era, a cordialidade daria lugar ao comportamento sanguinário; a sustentabilidade ambiental, ao exaurimento dos recursos naturais; a temperança, ao esbanjamento consumista; a boa vontade, aos impulsos desprezíveis; o pacto com a espiritualidade, aos desejos materialistas. Haveria novo conceito de coexistência a partir das lições devastadoras da pandemia, e o coronavírus teria o condão de operar rito de passagem para nova ordem mundial. Mais plácida, mais complacente, mais delicada, mais “humana”, enfim.
Enquanto isso, o Brasil, como não poderia deixar de ser, durante a pandemia pariu algumas jabuticabas. Não necessariamente nesta ordem, a primeira delas foi a descoberta do valor absoluto do “tratamento humano da medicina”, assim entendido que antes prevalecesse a veterinária hospitalar. Outra comovente percepção foi de que temos favelas, populações de rua, cem milhões sem acesso a serviço de saneamento e crianças a comer lixo nas ruas e nenhum porco abandonado, como dizia Darcy Ribeiro.
A pior expectativa do brasileiro, neste momento, é a obsessão ao retorno à normalidade. Que normalidade? São absolutamente devastadores os efeitos do coronavírus, que, neste momento, contabilizou 18 mil vítimas fatais em 3 meses. Por outro lado, ninguém faz a conta da normalidade, na qual, por ano, 102 mil pessoas morrem em decorrência de homicídios e acidentes de transporte. Carnificina invisível ou sociologicamente atribuída à miséria, quando a verdadeira causa é o fato de o Brasil ser avesso à obediência de qualquer regra que implique em disciplina social, além de gostar da impunidade.
Não vai haver cordialidade ou comportamento civilizado após a pandemia. Basta olhar as ruas. O brasileiro aproveitou o espaço vazio do isolamento social para se tornar ainda mais mal-educado, estúpido e desaforado. A normalidade será o retorno ainda mais perverso do procedimento rústico de ricos e pobres. O primeiro atira lixo ao espaço público e cruza o sinal vermelho por se considerar único pagador de impostos. O segundo tem igual comportamento por se entender desprovido de qualquer direito civil.
A única coisa que carece de retorno à normalidade é a conduta demagógica e bonapartista de exemplares proprietários locais do poder político, a se valer do apelo da “medicina humanitária” ou do intuito missionário de “salvar vidas” para prática de intenções veterinárias e bucaneiras. O falso dilema entre economia e saúde deu vida ao exercício arbitrário das ações de governo em detrimento das funções permanentes do Estado. O país, nem à época do recuo democrático do AI-5, que muita gente gosta de celebrar, foi administrado por decretos desprovidos de qualquer sustentação constitucional.
É verdade que falta liderança paternal ao presidente Bolsonaro no governo da pandemia. No entanto, parece-me oportunismo delirante encontrar no Coronavírus razões objetivas para crime de responsabilidade e assim realizar golpe de Estado parlamentar. Como escreveu Millôr Fernandes, “todo cego moral se julga um guia de povos”, e o Brasil está prenhe deles, a desejar que o País vá à bancarrota para liderar a falaciosa Nova Era.
Por Demóstenes Torres, 59 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.