21/05/2020 13:33
”Ela foi e continua sendo a maior pandemia que já vivi. Um vírus desgraçado chamado ‘Covid 49’ ”
Eram cinco horas da manhã, quando o toque do celular me acordou. Olhei o visor e surgiu a foto do Amarildo. Preocupado pelo horário, atendi. Pareceu-me estar com ressaca, voz rouca de noite mal dormida, só não senti o bafo. Apesar da primeira impressão, falou: – Nem conto; ontem, fui até um drive-thru de vacinação. Uma longa fila de veículos aguardava a vez do motorista ser vacinado. Eu estava de máscara e, ao meu lado, em fila dupla, uma moça também usando máscara azul, mais cara.
Os olhos azuis esverdeados e brilhantes se destacavam, olhou-me rapidamente e voltou a ouvir música, imaginei.
Um atendente, comunicou que teríamos que aguardar uma nova remessa de vacinas. Abri a janela, baixei a máscara e fiz sinal de desapontamento. Ela afastou a máscara e disse que a vida era assim mesmo.
Entabulamos conversa e perguntei-lhe o que estava ouvindo, respondeu-me que era admiradora de Frank Sinatra e músicas da época. Disse-lhe que comungávamos da mesma preferência. Ela sorriu.
Interrompi a conversa com Amarildo, e disse-lhe que ligaria mais tarde.
Às 13h, meu amigo retomou a conversa: – Pois então, agora posso relatar a minha melhor noite com uma mulher. Ela se chama Evarista. Tem 49 anos de idade, trinta menos que eu. Disse-me ser auxiliar de enfermagem. Depois de recebermos nossa dose salvadora, a convidei para almoçar aqui em casa.
Amigo, você sabe; sempre fui solteiro e tive oportunidade de viver grandes romances. Aqui na minha casa, onde você acha que um matadouro, não o é, você está enganado. O meu apartamento é um local agradável e o deixo sempre arrumado, perfumado, com flores que continuo comprando diariamente pelo delivery.
Pois então, continuei a conversa: convidei Evarista para um drink em minha casa; ela, surpreendentemente, aceitou. Dei-lhe o endereço, e ela seguiu-me até a quadra.
Ao chegarmos, ficou encantada com o esmero da sala. Percorreu com os olhos os quadros da minha coleção e os identificou com detalhes sobre a obra e seus autores. Preparei drinques suaves, alguns petiscos e música ambiente.
Conversamos longamente sobre literatura. Falamos sobre nossas preferências, e aflorou a coincidência de gostos por escritores românticos do final do século XVIII e início do XIX. Ela disse que adorava cartas de amor. Vaidoso, perguntei-lhe se gostaria de receber uma carta no melhor estilo de apaixonados. Aceitou, mas impôs que as cartas deveriam ser dirigidas para ela e com datas a partir de março de 2015, e que fosse maravilhosa a ponto de ela se apaixonar por mim.
Troquei os drinques por Black Label. Comecei a escrever, esmerando-me em me expressar como autores de grandes clássicos da literatura. Enquanto eu me dedicava à tarefa, ela, sem pedir licença, percorria com vagar os quartos, os banheiros, a varanda, a cozinha e tudo mais. De vez em quando, voltava para a sala e observava, com delicadeza, a minha destreza. Encerrei a carta e disse-lhe que pediria o almoço do melhor restaurante da cidade. Retirei de minha adega uma das minhas sagradas garrafas de vinho. Ela sorriu e bateu palmas. A rolha saiu suavemente, e Evarista sentiu o perfume aveludado. No decanter, o vinho ficou respirando, e eu suspirando. Ela pediu-me para ler a carta, respondi-lhe que só após o almoço, fomos para minha suíte e fizemos amor. Maravilhoso.
Terminei a longa conversa com meu amigo, Amarildo, e ele, simplesmente, sumiu por mais de um mês; achei que tivesse saído com sua musa para algum lugar romântico. Esqueci a conversa e me dediquei aos meus compromissos.
Dia desses, Amarildo telefonou. Voz triste e preocupado, relatou-me seu drama: – A tal de Evarista entrou na Justiça com um pedido de reconhecimento de união estável, e o juiz concedeu liminar, determinando o pagamento de pensão provisória no valor de dez mil reais, a primeira audiência já foi marcada, dois anos depois do fim da pandemia.
Na contrafé, além do relato dos direitos dela, juntou fotos nossas na cama, vídeos da sala, sons dos meus discos, e, incrível, roupas dela juntos com as minhas no armário e, o pior, minhas cartas de amor. Ela foi e continua sendo a maior pandemia que já vivi. Um vírus desgraçado chamado “Covid 49”. Sem se despedir, desligou.
Por Paulo Castelo Branco