30/05/2020 19:57
”O ministro Alexandre de Moraes é o responsável por 1 inquérito do Supremo que investiga fake news. Regimento do STF não justifica. Competência não é da Corte”
‘inquérito’ das fake news e a nulidade e a nulidade das provas obtidas
Vamos (tentar) explicar aqui rapidamente o equívoco técnico do STF no referido caso, respeitosamente.
Que fique claro que há muito já falamos dessa violação das regras constitucionais, nada se relacionando com fatos mais recentes. A crítica é exclusivamente “técnica”, jamais ao(s) julgador(es), submetendo-se o tema a todas as contracríticas para fomentar o debate.
1 – O ministro do STF Alexandre de Moraes foi “designado” (escolhido, sem sorteio aleatório e impessoal) pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, para conduzir o Inquérito nº 4.781, instaurado em março de 2019, com fundamento no art. 43 do Regimento Interno do STF.
2 – A regra dispõe que “ocorrendo infração à lei penal NA sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, SE envolver AUTORIDADE OU PESSOA SUJEITA À SUA JURISDIÇÃO, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.
3 – Portanto, essa regra se aplica RESTRITIVAMENTE se: a) os crimes forem “na sede ou dependência do tribunal” e desde que envolva autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição (pessoas que detenham a chamada prerrogativa de foro).
4 – O Princípio do Juiz Natural dispõe expressamente que ninguém será processado (nem investigado) senão perante o juízo competente (art. 5º, LIII, CF).
5 – Todas as provas que sejam produzidas com manifesta e indiscutível violação do juiz natural são nulas, consoante entendimento do próprio STF.
6 – Citando o ministro Dias Toffoli, o ministro Alexandre de Moraes decidiu no RHC nº 171.572-GO, em 13.set.2019 (portanto, DEPOIS da instauração do referido inquérito das fake news), que a “jurisprudência desta CORTE é firme no sentido de que o papel do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL como Corte Criminal relaciona-se intrinsecamente com o princípio constitucional do juiz natural, segundo o qual ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (CF, art. 5º, inciso LIII). Portanto, em estrita observância a esse princípio, somente o juiz constitucionalmente competente pode validamente ordenar medidas de interceptação de comunicações telefônicas em desfavor de titular de prerrogativa de foroʺ.
7 – E complementou dizendo que “não resta dúvida de que houve usurpação da competência do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás para supervisionar as investigações contra […], então Prefeito municipal de […], vício que contamina de nulidade toda a investigação realizada em relação ao detentor da prerrogativa de foro, por violação do princípio do juiz natural (art. 5º, LIII, da Constituição Federal). Com efeito, nos termos do art. 5º, LVI, da Constituição Federal, ʺsão inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitosʺ. Por sua vez, dispõe o art. 157, do Código de Processo Penal, que são inadmissíveis as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. […] Ante esses fatos, reconheço a nulidade das provas originadas a partir da mencionada confissão[…], sob o fundamento de usurpação de competência penal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás”.
8 – É indiscutível que o STF tem competência constitucional EXCLUSIVAMENTE para julgar fatos (passados) de pessoas que cometam crimes e que tenham prerrogativa de foro COMO AUTORAS, jamais quando VÍTIMAS.
9 – O ministro Celso de Mello (corretamente) decidiu em decisão publicada em 27 de maio de 2020 (Petição nº 8.803-DF) que “é inviável a requisição judicial para a instauração quer de inquérito policial (CPP, art. 5º, II), quer de procedimento de investigação penal pelo próprio Ministério Público (RE 593.727/MG, Red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes), pois, em tais singulares hipóteses, já se delineia o entendimento da impossibilidade constitucional de o magistrado (ou o Tribunal) ordenar a abertura de procedimento investigatório, não importando se “ex officio” ou mediante provocação de terceiro (o noticiante)”.
10 – Disse ainda o decano: “no julgamento plenário da ADI 5.104-MC/DF, entendeu existir forte plausibilidade jurídica na alegação de inconstitucionalidade dos arts. 6º, 8º e 11 da Resolução nº23.396/2013, do Tribunal Superior Eleitoral, nos pontos em que prevêem a possibilidade de instauração de inquérito policial eleitoral mediante requisição do Poder Judiciário […] por entender que tais preceitos normativos apresentam-se “em aparente violação ao núcleo essencial do princípio acusatório” […] , que consagra, em sede de “persecutio criminis”, a nítida e clara separação orgânica e funcional que deve haver entre as atividades de investigar, de acusar, de defender e de julgar […]”.
11 – Prosseguiu citando o próprio ministro Alexandre de Moraes na ADI 4.693-BA: “A Constituição brasileira de 1988 consagrou, em matéria de processo penal, o sistema acusatório, atribuindo a órgãos diferentes as funções de acusação e julgamento”. E concluiu: “não se mostra lícito ao Poder Judiciário determinar “ex officio” ou mediante provocação de terceiro (noticiante) a instauração de inquérito, o oferecimento de denúncia e a realização de diligências, sem o prévio requerimento do Ministério Público”.
12 – Vamos deixar claro: ultrapassado indiscutivelmente o mero direito de crítica por alguns (sobretudo por meio de redes sociais), são INADMISSÍVEIS as condutas (criminosas) contra quaisquer pessoas mediante a disseminação de “fake news”, que merecem a RIGOROSA e RÁPIDA apuração, como decorrência das obrigações processuais penais positivas, conforme já defendemos em obra com Frederico Valdez Pereira.
13 – São INACEITÁVEIS as condutas que pretendam atingir, direta ou indiretamente, o sistema democrático e as instituições do país, sobretudo o Supremo Tribunal Federal e os seus ministros. Ninguém tem o direito de, com excesso e violando a garantia de externar suas opiniões, atribuir pechas caluniosas e/ou injuriosas a quem quer que seja sem ser devidamente responsabilizado, inclusive criminalmente.
14 – Portanto, essas condutas em que são VÍTIMAS também ministros do STF (o que é INADMISSÍVEL num Estado democrático de Direito, repita-se) devem ser apuradas pelos juízos competentes, mediante o devido processo legal. O STF não possui competência constitucional para esse retromencionado inquérito, pois não apura crimes ocorridos nas dependências do STF e não envolve AUTORES dos supostos crimes com foro privilegiado no STF. E assim afirmamos com base na própria jurisprudência do STF.
15 – Essa é apenas uma opinião jurídica. Salvo melhor juízo.
Por Douglas Fischer, 50 anos, é procurador regional da República na 4ª Região. Mestre em Instituições de Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.