03/06/2020 13:23
”Manifestantes com faixa pró-democracia em ato na Avenida Paulista. Manifestantes não querem nova ordem. Pretendem, sim, derrubar o presidente”
Acordo deprimido, o que é muito difícil em minha vida. Sofro calado e, confusamente, apesar das adversidades, vivo em constante alegria. Sou bem humorado e uma espécie de Pollyanna; acho algo pra fazer mesmo dentro das tragédias.
Um dia, quando retornei ao Ministério Público de Goiás, um grande jornal destacou um repórter para acompanhar minha rotina e meus trabalhos. Logo ficou desacorçoado. Nos anos que passei na volta à instituição, na área penal, apenas em um mês fui o 2º lugar em produtividade; em todos os outros, fui o 1º. O jornalista tentou analisar meus pareceres, juntamente com seus colegas, mas sabia de Direito tanto quanto eu sei de física nuclear, nada. Para não perder a viagem, escreveu que eu deveria ter algum problema psiquiátrico porque, apesar de tudo, conservava-me alegre; chegava, abraçava todo mundo, atendia um monte de gente que ia me procurar e, finalmente, que eu agia como uma espécie de político dentro do MP e que a instituição deveria tomar providência. Batizei a tal providência de Caetano Veloso. Estavam a fim de acabar com minha “Alegria, Alegria”.
Lembro-me que tive medo apenas uma vez na vida. Em 1977, com 16 anos de idade, estudava no Colégio Objetivo de Goiânia e logo fiquei amigo de Marcio Fernandes, um jovem cujo talento se confirmou. Fizeram nossa cabeça e fui militar no “Comitê Goiano Pela Anistia”, que era presidido pelo professor Pedro Wilson, depois prefeito da capital e deputado estadual e federal, sempre pelo PT. Um dia, inflamados com as condições de liberdade de expressão da escola, que para nós eram fascistas, fizemos um poema a la Geraldo Vandré, com o nome “O Dia Em Que Pensei”. Arrumamos um mimeógrafo e imprimimos 500 exemplares sobre uma bela ilustração do coautor.
Distribuímos, primeiramente, na porta do Objetivo da Avenida Goiás, e depois, na hora do recreio, onde estudávamos, na avenida Mato Grosso. Às 11h estava tudo dominado. A direção da escola já tinha acionado a polícia política para identificar “os subversivos” que distribuíram material antirrevolucionário nas duas unidades do estabelecimento. Tiveram uma brutal surpresa porque os meliantes eram 2 jovens, um de 14 anos, que frequentavam mesmo a escola, com boas notas e sem distúrbios disciplinares. Ficamos detidos numa salinha contígua ao diretor, enquanto nossos pais chegavam. Meu medo era perder o respeito de meu pai, que trabalhava muito para sustentar seus 11 filhos. Diante do histórico excelente, fomos liberados, nas mãos de nossos pais, com a condição de nunca mais andarmos juntos, o que de nada serviu, pois até hoje temos uma fraterna convivência.
A angústia é ampliada com o noticiário avassalador sobre o novo coronavírus e a pandemia que ele causa. Parentes, amigos, anônimos, adoecem, morrem, recuperam-se. Vem à cabeça um artigo de Miguel Srouge, em que profetizava corpos sendo enterrados em valas comuns, mortes na porta do hospital e uma estratosférica profusão de casos quando o mal atingisse os pobres, os sem esgoto, os sem recursos.
Por outro lado, a ciência não sabe o que fazer. É óbvio que agora temos mais alternativas para enfrentar o estrago, mas muitos de nós iremos embora. Os médicos se viram, tentam descobrir a melhor forma de tratar o doente, contaminam-se, mas ainda não dominam a arte de curar a enfermidade que se espalha de maneira multifacetada, dependendo mais da reação orgânica de cada paciente do que da expertise dos discípulos de Hipócrates. Eu estava felicíssimo com a previsão do Mandetta, de que o auge da epidemia se daria no meio de maio. Agora já será agosto, sendo que daqui a pouco teremos 2.000 mortes por dia.
A economia se corrói, os mais pobres vivem das migalhas do governo, que não pode oferecer mais. Vários pequenos estabelecimentos jamais retomarão suas atividades. Quantos milhões de pessoas perderão seus empregos? Os especialistas dizem que só recuperaremos o nível econômico do ano passado daqui a 10 anos. Se você sai, verifica que a rua está abarrotada de novos moradores. Por maior que seja a caridade que cada um faça distribuindo esmolas, remédios, roupas, cestas básicas, material de higiene, a miséria continua lá. Eu sei, os especialistas recomendam que fiquemos dentro de casa; estão certos, mas como impedir que os miseráveis tentem sobreviver, se até os ratos nas ruas de Nova York estão praticando canibalismo?
O homem é um animal social, não suporta o isolamento, tanto que a lei, sabiamente, não pune sua fuga. Os juristas não gostam dessa simplificação, mas os presos têm o direito de fugir. Sim, se praticou crime correlato, responderá por ele, como, por exemplo, dano ao patrimônio público, além de cometer falta grave, definida na Lei de Execução Penal. Chega a ser crueldade proibir irmãos de se verem, pais de abraçarem os seus filhos, avós de beijarem os seus netos (já não vejo a Bibi desde abril). As pequenas reuniões devem acontecer, é condição afetiva da sobrevivência humana.
Mas como sou privilegiado, vou curar esse banzo assistindo a um bom desenho animado da minha época de criança. Lá vou eu atrás do Tom e Jerry, Pica Pau, Pep Legal, Piu Piu e Frajola; todavia, antes, resolvo dar uma parada na CNN, pra quê? Mais uma vez, um maluco de um policial branco matou um negro asfixiado nos Estados Unidos. Impressionante como o racismo e a xenofobia ainda resistem. Os americanos protestam, não só negros, lindamente. Infiltrados saqueiam, queimam, provocam desordem. Aqui, os policiais continuam tendo apreço pelo extermínio de favelados: já imaginaram quando chegar “a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”?
Comecei a zapear e encontrei, não sei onde, 4 capítulos de uma série sobre Jorge Mautner. Aí valeu a pena. Duas músicas suas fizeram enorme sucesso no rádio quando eu era menino: “Sapo Cururu” e “Samba dos Animais”. Fui apresentado à 1ª gravação que fez, logo no início da ditadura militar, que se chamava “Não, Não, Não”, e me lembrou muito do presidente Jair Bolsonaro: “Não, não, não quero ouvir mais você falar/Bobagens sobre todas as coisas/Todas as coisas, sem exceção/Tudo é tão triste quando ouço você/Parece que tudo assim sempre há de ser/Guerra e matança e fome sem esperança/É que você não liga/Pra quem vive a sofrer/Dói, dói, dói no coração/Você diz que mulher é ser inferior/Que dinheiro compra tudo, compra até o amor”.
Bolsonaro está se transformando num ser cansativo. Parece aqueles moleques de gangues que existiam antigamente. Viam uma confusão, atravessavam a rua, pulavam dentro dela, trocavam sopapos com todos e iam embora eufóricos. Missão cumprida, arrumar encrenca, sentido! Causa confusão com todos, com o Congresso Nacional, com os corretíssimos Alexandre de Moraes, Celso de Mello e Roberto Barroso. Lembre-se do grande Evaldo Gouveia, que morreu esse final de semana: “Veja só, que tolice nós dois/brigarmos tanto assim (…)/Brigo eu, você briga também,/por coisas tão banais (…). E ao morrer então é que se vê,/ que quem morreu fui e foi você”. Há um rasgo declarado de fascismo no seu governo.
Vejo, na telinha, que surge um novo movimento que busca a “democracia” no Brasil. Interessante, pensei que vivíamos num regime democrático. Que no país as instituições funcionavam livremente, o Congresso, o Judiciário, as igrejas, a imprensa; que as pessoas tinham liberdade de ir e vir, que respeitávamos os direitos humanos e, sobretudo, que a Constituição pairava sobre nós, tementes, como uma vacina poderosa contra a intrusão do autoritarismo. O que há é uma rabugice intolerante do Executivo. Nuvem passageira. O que querem não é uma nova ordem democrática e sim derrubar o presidente Jair Bolsonaro, o que se configura um neofascismo. Estão juntando, de novo, gente de todo lado que só pensa na queda do apedeuta. Esse desenho já se viu nos golpes contra João Goulart, Collor e Dilma.
Vou dormir pela 2ª vez na vida com a sensação de medo. Os demagogos não têm limite, e estão nos coronéis, delegados, atores pornôs, financiadores de fake news, que foram eleitos com a bandeira extremista, mas, igualmente, nos sindicalistas, associativistas, ativistas que estiveram até ontem dirigindo o país. O povo escolheu e nós temos que tolerar o resultado até a próxima eleição. Aí os chamados “70%” poderão, “democraticamente”, derrubá-lo. É muito incomum no Estado de Direito que o impeachment seja a regra pra se abreviar o poder.
Por Demóstenes Torres, 59 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.