Análise – Índices da Bolsa medem desempenho de ações, não da economia

05/06/2020 13:30

Ibovespa reage por motivos próprios; moeda forte não é economia forte; “Recuperação” sim, mas com aspas, diz Kupfer

Embora esteja presente no cotidiano das pessoas, a economia não é uma matéria com a qual o senso comum tenha as melhores relações. São muitos os conceitos não intuitivos que costumam atropelar a compreensão dos fenômenos e processos econômicos.

O vaivém das cotações das ações, nas bolsas de valores, e do dólar, nos mercados cambiais, são dois dos pontos mais sujeitos aos desencontros do senso comum com os significados dos fatos econômicos. Quando, então, o ambiente político está mais contaminado, as coisas se complicam ainda mais nesses quesitos.

Já deu para perceber que se está falando do momento atual. Depois do mergulho histórico da economia em abril, bastou uma reação das cotações, na Bolsa brasileira, nos últimos dias, assim como do real ante o dólar, para que muitos achassem que o pior já teria passado, sem que se confirmasse a tragédia econômica anunciada pelos opositores do governo.

A Bolsa vinha recuperando do mergulho de março e acumulou, de fato, altas fortes, nesta primeira semana de junho. O Ibovespa, seu principal índice de desempenho, saiu de 87 mil pontos, na segunda-feira (1º.jun.2020), fechou em 93,8 pontos, na quinta-feira (4.jun), e tem espaço para ir além. A trajetória ascendente vem desde 15 de maio, quando o pregão fechou a 77,5 mil pontos.

No câmbio, as cotações do dólar vinham caindo desde o pico de R$ 5,90, em meados de maio, tendo recuado até R$ 5,30, no fim do mês passado. Na terça-feira, 2 de junho, o dólar desceu 3,25% ante o real, maior baixa diária em dois anos. Continuou a cair no dia seguinte, batendo em R$ 5,08, mas interrompeu o movimento, fechando a R$ 5,13, nesta quinta-feira. Novos recuos, de todo modo, são possíveis.

Num clima político crescentemente polarizado, foi o bastante para que divisões bolsonaristas se sentissem autorizadas a comemorar a “retomada” e projetar uma rápida volta à normalidade. Para isso, voltou a ser invocada a velhíssima crendice do senso comum, de acordo com a qual aonde a Bolsa vai a economia vai atrás. Também foi tirada da gaveta a ideia sem lógica econômica, mas cara ao senso comum, de que um real forte significa economia forte.

É sabido que nada pode ser mais enganoso. Mas também é sabido que nem os inúmeros e recorrentes desmentidos oferecidos pela História são capazes de sepultar essas crenças. Os frequentes episódios de estouro de bolhas, e de crises financeiras com origem nos pregões das bolsas, que compõem uma regra cíclica na turbulenta rotina dos mercados, nessas horas quase nunca são levados em consideração.

Já foi devidamente empurrado para o fundo dos escaninhos da memória, por exemplo, entre outros episódios marcantes, a escalada do Ibovespa nos meses que antecederam a obtenção do grau de investimento pelo Brasil, no primeiro semestre de 2008. Em maio, quando o carimbo de bom pagador foi anunciado, a Bolsa alcançou o então recorde de 73,5 mil pontos. Não era, porém, nenhuma indicação de que um deslanche da economia estava em curso.

Nos três meses seguintes, acompanhando as nuvens carregadas que se formavam nos mercados mundo afora, o Ibovespa desceu a menos da metade, reagindo à grande crise global que eclodiu em setembro, com a quebra do banco Lehman Brothers. Apesar da puxada no pregões meses antes, a economia brasileira, como todas as demais, estava no caminho de uma pane de grandes proporções.

O Ibovespa, na verdade, não é um termômetro da economia —e nem tem essa pretensão. Ele simplesmente mede o desempenho médio de uma carteira teórica em que estão listadas ações mais negociadas de empresas de capital aberto com papéis transacionados na Bolsa.

Atualizado de tempos em tempos, o Ibovespa é formado hoje por ações de 75 empresas. Ocorre que papéis de apenas seis dessas empresas respondem por mais de 40% do seu movimento. São dois bancos (Itaú e Bradesco), duas empresas exportadoras de commodities (Vale e Petrobras), uma empresa do setor de consumo não durável, mas bastante internacionalizada, e empresa da própria bolsa, a B3. Seu sobe-e-desce está longe, como se vê, de poder refletir as reais tendências da economia.

Taxas de juros internas muito baixas, justamente porque a atividade econômica se encontra no chão, são fortes impulsionadores dos pregões. Excessos de liquidez, bombeados pelos bancos centrais dos países avançados, para sustentar suas economias na pandemia, podem transbordar para emergentes. “O inchaço dos bancos centrais está puxando as bolsas para cima pelas orelhas”, avalia André Perfeito, economista-chefe da Necton Investimentos, notando que o movimento inclui o banco central brasileiro.

O roteiro dessa alta, que também é seguido no mercado de câmbio, não tem muito a ver com os fundamentos da economia real. Deriva mais de cálculos financeiros, caso, por exemplo, do baixo preço dos ativos brasileiros em dólares.

No duro mundo da produção e das vendas, embora já se formem expectativas mais animadoras, com a reabertura dos negócios, nem onde o isolamento social foi adotado mais cedo e com mais disciplina, dá para assegurar que o pior já passou. Que dirá no Brasil, onde o isolamento, já em fase de relaxamento, tem sido do tipo porcina —aquele que foi sem nunca ter sido.

Podem não restar muitas dúvidas de que o fundo do poço foi atingido em abril, mas os sinais de uma recuperação, que começaram a se esboçar a partir de dados de maio, não podem ser tomados pelo valor de face. Dado o colapso da atividade econômica e a derrubada histórica da produção e das vendas, as bases de comparação baixíssimas exigem relativizar as tendências mais recentes.

Números melhores, em relação a abril, mas dramaticamente ainda piores do que os dos períodos pré-pandemia, comporão uma recuperação entre aspas — estatística. Um exemplo do que deve vir a ser uma constante, nos próximos tempos, pode ser encontrado nos resultados, no Brasil, das vendas de veículos em maio. Houve uma crescimento de 12%, em relação a abril, mas, na comparação com maio de 2019, essa “recuperação” representou uma queda de 75% (!!!).

Resumindo a história, ainda que a trajetória da produção e das vendas continue ascendente em junho, julho e adiante, retrações em relação aos meses anteriores não podem ser descartadas. As tendências de recuperação, mesmo essa recuperação com ressalvas, não estão asseguradas.

No fim de 2020, a produção total brasileira, segundo as projeções, terá contraído pelo menos 7%, recuando aos níveis de 2017. Se Bolsa tiver voado e a taxa de câmbio mergulhado, a atividade econômica não terá quase nada com isso.

 

 

 

Por José Paulo Kupfer, 70 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve colunas de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão, lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e Ordem dos Economistas do Brasil. Também é um dos dez “Mais Admirados Jornalistas de Economia”, nas votações promovidas pelo site J&Cia. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.

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