05/06/2020 13:25
Apoiador do presidente com a bandeira do Brasil na Esplanada dos Ministérios, em Brasília: “Agora temos de administrar a relação dos movimentos políticos e sociais com o relógio dos acontecimentos”
Tornou-se comum neste cotidiano de pandemia e confinamento perder-se a noção de tempo. O “que dia mesmo é hoje?” está incorporado ao novo normal de todos nós, reflexo de horas sem fim divididas entre sofrimento, incerteza e espera. No Brasil, o mesmo comportamento parece dominar o debate político.
Apenas nos últimos dias vimos setores da direita e da esquerda escondendo-se no passado para evitar compromissos sobre a crise presente. Outros, exigindo que primeiro combine-se o futuro para depois resolver-se as urgências de hoje. E, ainda, os que querem cuidar apenas da conjuntura. Não bastassem milhares de mortes, o drama social e a gravíssima crise econômica, agora temos de administrar a relação dos movimento políticos e sociais com o relógio dos acontecimentos.
O noticiário eletrizante sobre quem assinou, quem se recusou, quem foi recusado; a escolha da cor da roupa a vestir para a retomada de manifestações de rua – preta, amarela ou importada da Ucrânia ; o tom das entrevistas ou das lives; tudo agora tem como ponto de partida a nova divergência brasileira –o tempo.
Parte da esquerda adotou uma postura simples: refugia-se no passado e de lá não sairá a menos que os fatos já ocorridos – do impeachment à Lava Jato – sejam revistos e refeitos com indulgência plena aos erros por eles cometidos e condenação sem direito a recurso de quem denunciou a corrupção e o desmando econômico na segunda parte dos governos petistas. No pulso de Lula, a hora oficial é a de Curitiba. Para sempre.
Lula carregou como reféns para esta viagem ao passado boa parte dos que poderiam (ou poderão?) ser construtores de uma agenda de esquerda com os olhos postos no presente e no futuro do Brasil. O drama pessoal e político de Fernando Haddad expressa isto muito bem: ele oscila entre cometer harakiri político por solidariedade a Lula ou, para voltar a frequentar os espaços onde se desenham os próximos passos do País, romper com ele. Entre as duas opções, não exerce nenhuma e vive patrulhado pela desconfiança, dentro e fora do PT. Como ele, os poucos novos líderes petistas surgidos nos últimos tempos.
Por razões diferentes, Ciro Gomes, apesar de sua reconhecida capacidade de formulação e expressão, escolheu uma paradoxal forma de conflitar com Lula: faz companhia ao petista no passado, a pretexto de acertar contas.
Nossa esquerda vintage presta, assim, um inestimável favor ao bolsonarismo. Para quem orgulhosamente se deixa infectar pelo que a humanidade produziu de pior – da Ku Klux Klan ao nazismo – nada melhor que enfrentar opostos que vivam olhando para trás. Ambos, assim, deixam de atender as exigências de hoje –democracia, diversidade, oportunidades, ética e eficiência.
Este cenário, criado a partir dos erros da esquerda lulista e das características do bolsonarismo, confere papel central na construção do Brasil pós pandemia aos que não se deixam aprisionar pelo passado e pelos extremos. Fatos bastante positivos das últimas semanas mostram que a sociedade reage. E apontam para a existência de uma incipiente, nem sempre clara ou organizada, mas de qualquer forma uma renovada energia política para propor alternativas ao País.
Em um momento de tamanhas transformações, não seria justo nem possível cobrar que esta energia emergisse organizada, definida na forma e nos objetivos. Primeiro, porque a sociedade democrática deixou no passado o papel que reservava a instrumentos clássicos para mediação de demandas e utopias – partidos, como o antigo MDB; o famoso trio CNBB/OAB/ABI nas diretas e contra Collor. Os tempos são outros, inútil esperar que a expressão digital da política vista-se com trajes analógicos.
Assim, apesar da pressa, é preciso paciência com este novo, enérgico e indefinido movimento que começa a surgir no Brasil. Sem, no entanto, deixar de exigir dele algumas precauções indispensáveis.
O Brasil em dúvida sobre as agendas de hoje, ontem e amanhã
A primeira, e mais urgente, é concentrar-se na tarefa presente. Defender a democracia diante da força demonstrada por quem a ataca (e que não pode ser desprezada) não é apenas prioridade. É obrigação e necessidade, nestes tempos tristes.
A segunda é compreender o simples. Quem defende a democracia não usa os métodos de quem a ataca. Em qualquer momento da história brasileira e universal, a trilha sonora que uniu e construiu veio carregada de paz e pluralidade, uma esperança sempre equilibrista. Como rapidamente perceberam os norte-americanos, nada fortalecerá mais os intolerantes que o uso, por quem os combate, da linguagem comum do ódio e de formas violentas de manifestação. A velocidade com que Bolsonaro e Trump correram a tentar caracterizar movimentos de oposição como “extremistas e terroristas” deveria ser suficientemente didática.
A terceira precaução exige uma sofisticada e prudente construção. O clima, quase espontâneo, das últimas semanas no Brasil obviamente não se sustenta sem que ganhe organicidade com a definição de objetivos básicos e uma estruturação mínima de atividades. No manual clássico, esta organicidade acontece com a vinculação do processo a um projeto – pessoal ou partidário. Permitir que isto aconteça, hoje, no Brasil não construirá futuro algum. E vai destruir os objetivos imediatos. De outra parte, e aí o desafio maior, a própria vertigem em que vivemos levará rapidamente a que esta energia seja desafiada por discussões que remetem a propostas para o futuro – como aprofundar a democracia, um novo modelo de governança política, redefinir o papel da Estado, o equilíbrio indispensável entre sensatez fiscal e sensibilidade humana e social, enfim a agenda de um amanhã que está batendo angustiadamente à porta.
Em outros momentos da história brasileira, lideranças extraordinárias souberam articular com maestria a unidade em nome do presente e a lenta construção, ainda que com dissensos, de propostas para o futuro. Hoje tudo é diferente, mas a necessidade se repete. A começar pela necessidade de, até pelas lições do passado, não viver em função dele. Priorizar as exigências de hoje. E com transigência e tolerância tentar construir futuro. Não é pouco, nem é fácil. Mas é o único caminho para administrar os tempos da política e as dramáticas exigências que atravessamos no Brasil.
Por Antônio Britto Filho, 67 anos, é jornalista, executivo e político brasileiro. Foi deputado federal, ministro da Previdência Social e governador do Estado do Rio Grande do Sul. Escreve sempre às sextas-feiras.