Opinião – O poder é como uma droga

08/06/2020 18:07

Fachada Palácio do Planalto, em Brasília, sede do Poder Executivo: ”vaidade humana é quase infinita; Os Poderes são objetos de sedução”, analisa Carvalho

Sempre me interessei pelos efeitos que o poder tem sobre as pessoas. Nós vivenciamos muito a síndrome do pequeno poder em partidos políticos, associações, condomínios, entre outras entidades. Pessoas e grupos que não apenas não largam o osso (e o filé mignon), mas também conseguem fazer com que sua longa permanência nos cargos seja vista como natural entre os públicos envolvidos.

A maré na literatura acadêmica mudou há algum tempo. Hoje parece haver algum consenso de que o poder, mais do que mudar, amplifica tendências individuais prévias. Isto é, aquela pessoa que é autenticamente preocupada com os demais se transformaria em um líder servidor. Já aqueles que vieram ao mundo para levar vantagem nas relações sociais ou que têm sede de dominância se transformariam em líderes oportunistas.

De fato, o comportamento humano, na maioria das vezes, é uma interação entre características individuais e a situação ou contexto em que a pessoa se encontra. Isso não seria diferente com os efeitos do poder, mas o que torna esse fator tão especial é que ele está diretamente associado com o hardware que a evolução nos deu ao longo dos milênios.

Uma boa pista de que algo é costurado no nosso hardware evolucionário é quando suas consequências aparecem no nosso sistema endócrino. Henry Kissinger dizia que o poder é o afrodisíaco mais forte. Estava certo: experimentos que manipularam a sensação de poder entre os participantes, mesmo por um curto intervalo de tempo, constaram que aqueles que foram empoderados apresentaram mudanças significativas no hormônio do stress (que diminuiu) e na testosterona (que aumentou). E vice-versa. Poder é um viagra.

Pesquisas também mostram efeitos diferenciados do poder no julgamento, nas crenças, nas emoções e no comportamento das pessoas. É como se fosse uma droga que altera o modo do funcionamento do cérebro, levando indivíduos a se tornarem, na média, mais egocêntricos, mais hipócritas, menos inibidos e mais propensos a cometer e a justificar atos imorais. Poder brutaliza.

Na prática, é como se fosse um álibi para não respeitar as mesmas regras sociais aplicáveis aos outros. É o tipo de coisa que aparece nas fraudes milionárias de CEOs que pipocam de tempos em tempos. Ou em pesquisas que mostram que os mais endinheirados tendem a cometer mais infrações de trânsito e acreditam que seu sucesso é explicado exclusivamente por mérito, ignorando o papel da sorte e das condições de nascença.

Não é que o poder seja necessariamente ruim, como vimos. Nem todos sofrem seus efeitos intoxicantes. Porém não podemos nos esquecer de que humanos, primatas e outras espécies vivem em hierarquias de dominância social. O poder, isto é, o controle sobre recursos – dinheiro, pessoas, burocracias, seguidores, entre outros – é o passaporte para buscar um degrau ao sol nessas hierarquias.

Como esperado por se tratar de um fenômeno evolucionário, as consequências para quem ocupa degraus inferiores não costumam ser boas, sob vários aspectos. Nessa linha, os estudos seminais feitos pelo epidemiologista britânico Michael Marmot mostraram efeitos únicos e devastadores do baixo status social na saúde e longevidade das pessoas.

PARADOXO DA COLABORAÇÃO

Ampliando um pouco a lente de análise, é importante falar de duas dinâmicas básicas que entram em ação quando se conquista o poder. Uma é a busca pela perpetuação. Temos testemunhado, por exemplo, todo presidente ou partido político que chega ao Planalto sonhar com décadas de dominância. Similarmente, dinastias são comuns nas diversas entidades da vida cotidiana e são facilitadas pelo controle de recursos, que não raro descamba para a corrupção.

A segunda dinâmica é a da cooptação. Quem divide o poder (como órgãos legislativos) e quem ter por atribuição fiscalizar e controlar são inevitavelmente objeto de aproximação e sedução, geralmente bem-sucedida. Mais chance de brotar corrupção.

Como a legitimidade de qualquer entidade tem uma dimensão simbólica e é preciso dar lustre aos status quo, pessoas influentes ou respeitadas também entram nesse radar. Não é difícil coopta-las: a vaidade humana é quase infinita e há sempre aqueles que acreditam poder contribuir para um fim mais nobre.

O que acontece com frequência, nesses casos, é uma espécie de paradoxo da colaboração, claramente vivido pelos bons e poucos técnicos que ainda restam no governo Bolsonaro. Quanto mais se colabora com um projeto fracassado ou continuísta, por mais nobres que sejam os motivos, menos feio ele fica e mais se adia o encontro com seus verdadeiros problemas.

Por não entender as consequências do fenômeno nos níveis individual e coletivo, deixamos organizações e sistemas sociais (como o político) com muito poder concentrado e com amplas oportunidades de descarrilamento do trem das boas intenções.

 

 

 

Por Hamilton Carvalho, 48 anos, estuda problemas sociais complexos. É doutor em Administração pela FEA-USP, mestre em Administração pela mesma instituição, membro da System Dynamics Society e da Behavioral Science & Policy Association.

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