Opinião – O fisiologismo do povo brasileiro

22/07/2020 00:03

”Bolsonaro em carreata de apoiadores: razões para a popularidade do presidente não diferem muito das do PT”, diz Guaracy

O presidente Jair Bolsonaro é hoje o novo e grande expoente de um paradoxo político e social de profundo significado na sociedade contemporânea –e especialmente no Brasil.

Como pode continuar popular um presidente investigado por conta de negócios escusos operados por um ex-assessor, que não esconde seu autoritarismo nem sua intenção de manipular os órgãos de investigação para safar-se?

E o que dizer de um presidente que governa abertamente com a ação de militantes propagadores de mentiras, e defende o armamento da população ao mesmo tempo em que ataca as instituições democráticas? O que se poderia esperar como reação da população a um governante que chega ao ponto de esconder dados sobre a pandemia do coronavírus para confundi-la?

No entanto, um levantamento na semana passada indicou que 41% da população aprova a gestão de Bolsonaro –uma fatia do mesmo tamanho que o elegeu em 2º turno à presidência.

A fatia de 42% que desaprova Bolsonaro é também quase do mesmo tamanho que aquela que não votou nele na eleição. Sinal de que as ações de Bolsonaro no governo, ou o que se sabe a mais dele hoje, não interferiram muito na sua popularidade, ainda bastante expressiva.

Bolsonaro em carreata de apoiadores: razões para a popularidade do presidente não diferem muito das do PT

Os motivos que levam Bolsonaro a continuar com força popular podem ser entendidos numa análise mais detalhada dos números. Verifica-se, por exemplo, que Bolsonaro tem 48% de aprovação entre os brasileiros que estão recebendo a ajuda de custo de R$ 600 ao mês durante a pandemia.

Dada essa percepção, a equipe econômica não apenas desistiu de desinflar o Bolsa Família, como estuda ampliar o programa, com outro nome –como Renda Brasil. Bolsonaro tomou o lugar do PT naquilo que ele mais criticava –o assistencialismo com fins de aliciar uma massa de manobra ideológica.

A realidade é que Bolsonaro se mantém prestigiado pelas mesmas razões que faziam Lula continuar altamente popular, apesar das acusações de corrupção e do naufrágio econômico patrocinado com dinheiro público nos anos do PT.

Quem o elegeu foram os brasileiros que se achavam excluídos dos benefícios do governo, incluindo a classe média urbana do Sudeste, que financiava o assistencialismo nordestino no lulopetismo, e saiu às ruas em 2016 clamando pelo impeachment de Dilma.

Hoje, somam-se a estes os brasileiros que já recebiam algum benefício do governo nos tempos do PT, e continuam recebendo. Para eles, não importa qual é a cor ou o sinal ideológico da fonte do dinheiro. Viva Bolsonaro.

O brasileiro reclama do fisiologismo do Congresso, mas a sociedade brasileira é impregnada pelo fisiologismo. A polarização política, traduzida como uma oposição de ideias entre direita e esquerda, pode ser também lida como uma disputa pelos recursos federais, em que os antigos excluídos saíram ganhando e agora se juntam a quem teve a feliz surpresa de continuar na lista de pagamentos.

Num cenário econômico mundial em que a revolução tecnológica desestruturou a economia, cortou empregos e achatou salários, grande parte da população passou a depositar suas esperanças de sobrevivência no socorro do Estado. Ainda que o Estado também sofra com a disrupção econômica, que levou à migração de capitais e à queda na arrecadação, especialmente com impostos sobre salários do mercado formal.

Existe, assim, uma disputa pelas fatias do bolo cada vez menor do Estado, disfarçada por rótulos ideológicos. Não importa que o presidente seja grosso, burro ou ladrão. Nem que a gastança leve potencialmente a um futuro desastre. Desde que continue favorecendo o lado certo.

A intolerância, manifestada por meio do fanatismo tanto religioso como político, é o mecanismo pela qual uma fatia da sociedade legitima seu direito sobre privilégios acima de outros. Ela busca quebrar razão, criando o ambiente da “pós-verdade”, que está no princípio humanista da igualdade entre todos. E se torna, dessa forma, uma ameaça aos fundamentos da própria democracia, plantada sobre o princípio da igualdade de oportunidades e tratamento para todos.

Esse fenômeno ocorre no mundo inteiro, a começar pelos Estados Unidos, epicentro da disrupção tecnológica, onde ela fez grandes fortunas, mas também colabora, como no Brasil, para a criação de um processo de enorme concentração de renda e exclusão social. Com isso, acirram-se as disputas ideológicas, que buscam por meio do discurso fanático a imposição do interesse de um grupo sobre outro.

No caso brasileiro, o fanatismo político, com que a população –sejam os apoiadores de Lula, sejam os de Bolsonaro– faz vista grossa aos desmandos do governo, tem um outro componente. Ele é nativo, no sentido de ser genuinamente brasileiro, e provavelmente histórico.

Na pesquisa para meus dois livros de história (A Conquista do Brasil e A Criação do Brasil, ambos lançados pela editora Planeta), estudei profundamente as origens e o DNA brasileiro. E passei a acreditar que existe ainda uma forte influência dos nossos antepassados no Brasil de hoje. Não apenas no empresariado brasileiro, herdeiros das capitanias do mato, afeitos ao ganho fácil, à apropriação do poder público para benefício pessoal e indiferentes ao trabalhador, ao ponto da desumanidade. Essa influência permanece sobretudo na população.

Apesar dos imensos esforços para acobertar a origem indígena do brasileiro com um sobrenome português, é difícil negar a influência tupiniquim sobre a nossa sociedade. Gostamos de pensar que os índios viraram nome de rua ou cidade, mas a sociedade indígena ainda está aqui: somos nós. E a nossa política continua tribal.

Na ecopolítica indígena, o chefe governa distribuindo presentes –e o índio espera do chefe que lhe dê presentes, algo, a seu ver, muito natural. Sem presentes, o índio troca de chefe, de maneira que o favorecimento não é uma disfunção do sistema, é o sistema em si. O índio não tem a noção de corrupção, nem a de pecado, o que fez no passado muitos jesuítas, como o padre Manoel da Nóbrega, simplesmente desistirem da catequização.

O brasileiro gosta de falar mal do fisiologismo do Congresso, mas somente quando vê que a corrupção está favorecendo alguém que não ele próprio. O problema nacional não é o fisiologismo dos políticos, produto da sociedade de onde são extraídos. É o fisiologismo da população, que, mesmo nas suas fatias menos favorecidas, não se importa com a lisura das coisas, desde que o produto do roubo não saia, e sim entre no seu bolso.

É algo que não vamos consertar hoje, nem amanhã. E que nos manterá no atraso sócio-econômico por muito tempo.

 

 

 

 

Por Thales Guaracy, 55 anos, é jornalista e cientista social, formado pela USP. Prêmio Esso de Jornalismo Político, é autor de livros como “A Conquista do Brasil”, “A Criação do Brasil” e “O Sonho Brasileiro”, entre outros. Pertence ao board do Projeto Condorcet, plataforma colaborativa global para o desenvolvimento da democracia na era digital.

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