Opinião – Receita de médico

25/06/2020 13:27

”Acrescento a essa receita, o valor de um médico que consegue escrever tão bem, em momento tão grave para a humanidade e quando ele está dedicado a salvar vidas”

Com a devida autorização de Luis Gustavo Gomes Ferreira, médico cardiologista, muito competente, exercendo a nobre profissão em Brasília, sempre que o tempo permite exercita a sua boa vocação de escriba. Nesse período de Pandemia do COVID19, transcrevo texto de sua autoria nessa tribuna democrática, numa homenagem à classe médica brasileira que combate a Pandemia do COVID19, até arriscando a própria vida e, também, pela qualidade da narrativa, em momento tão difícil, ampliado pela diuturna divulgação de fatos negativos e notícias tristes, em todo o mundo, em especial no nosso Brasil. Leiam o que ele divulgou no Facebook: “ No início, na velha infância, as convicções são simples e certeiras. Nossos pais representam os maiores super-heróis da Terra e são capazes de qualquer proeza para nos fazer felizes. A melhor coisa do mundo é correr de pé descalço atrás de uma bola, numa pelada entre amigos, com sandálias fazendo às vezes de traves imaginárias. E a pior coisa do mundo é tomar chá de boldo para curar enxaqueca e “problemas de fígado”.

Avançando na procissão escolar, os conceitos seguem cordatos e de fácil assimilação. Pedro Álvares Cabral almejava chegar às Índias, perdeu-se nas vagas do Atlântico e “por acaso” encalhou na Bahia, numa “praia muito chã e formosa”. Um pentágono sempre será um polígono de cinco lados, mesmo que sobre ele despenque um avião sequestrado por terroristas. E a Mesopotâmia, essa entidade tão cara aos professores de história, repousará eternamente entre os rios Tigre e Eufrates.

Talvez seja nos anos da faculdade que a porca comece a torcer o rabo. Os conceitos tornam-se mais difusos, as verdades turvam-se de ambiguidades e adquirem caráter transitório. Há sempre o fantasma da incerteza rondando, fazendo o pensamento ora pender para um lado, ora pender para o outro, sem falar nos momentos de impasse em que estacamos numa encruzilhada, com vários caminhos possíveis e nenhuma convicção do melhor rumo a tomar.

De uns anos para cá, algo mudou. O acesso a todo tipo de informação foi franqueado a todo tipo de gente. Dessa combinação infinita, brotou uma multidão de sábios e profetas, todos apaixonados por suas bandeiras, defendidas de forma ferrenha e ruidosa, na busca incessante do argumento irrefutável (e quase sempre falacioso) tentando calar e humilhar as hordas inimigas, que são as que ousam pensar diferente.

Frente a essa “guerra de narrativas”, para usar um termo da moda, sinto-me cada vez mais deslocado. A melhor saída talvez seja imitar o personagem de um conto de Raduan Nassar, que para bem viver, fez o seguinte pacto com o mundo: “diante do seu barulho, ofereço-lhe o meu silêncio.” O que certamente será catalogado como isenção, a ofensa padrão contra o povo da minha fraca estirpe.

Como me resta um pouco de honra,  talvez um resquício de orgulho socrático, deixo aqui algumas pouquíssimas sabedorias que consegui juntar até agora, embora sejam todas tolas: Jordan foi o melhor no basquete; Ronaldinho Gaúcho, o mais habilidoso no futebol (não vi Pelé); suco de caju é o melhor líquido que se pode beber e chá de boldo segue sendo o pior; Jorge Ben Jor é gênio, e Rubem Braga é o maior cronista de que se tem notícia. Fora disso não arrisco nada ”

Acrescento a essa receita, o valor de um médico que consegue escrever tão bem, em momento tão grave para a humanidade e quando ele está dedicado a salvar vidas. É orgulho para a classe médica.

 

 

 

 

Por Jorge Motta é jornalista

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