Opinião – A incrível morte de shopping centers

05/08/2020 00:27

”EUA registrou alta nos fechamentos. Tendência acelerada pelo coronavírus. Comportamento pode chegar ao Brasil. Pressa para reabrir é atitude arriscada”

Muita gente tem uma relação de amor com shopping center, como indicado nas filas na reabertura em meio à pandemia. Esses centros comerciais, por bem ou por mal, fazem parte da nossa vida cotidiana no Brasil. Por isso estranhei, há cerca de 2 anos, quando começaram a pipocar notícias sobre a morte de shopping centers (os malls) nos EUA.

Intrigado, eu e minha coautora, Giuliana Isabella, professora no Insper (SP), desenvolvemos um modelo de simulação e um artigo acadêmico para descrever os mecanismos que poderiam levar ao fechamento definitivo de um shopping.

Na revisão da literatura acadêmica e profissional, alguns fatores se destacaram como cruciais para a tendência observada na América do Norte. Um deles, a forte expansão do comércio eletrônico, que também influenciou na quebradeira de grandes lojas de departamento, que sempre foram âncoras (ímãs de público) nos grandes centros comerciais. Outro, novos formatos do varejo americano, com megalojas independentes, que atendem boa parte das necessidades de consumo. Outro, muito importante, a crescente desigualdade da renda americana, que tirou enorme poder de compra da classe média.

Mudanças comportamentais também são apontadas como aceleradoras do fenômeno. Na era do vício em celular, ficou menos popular a ida como passeio coletivo ou como programa de adolescente; os míticos ratos de shopping, basicamente adolescentes e jovens adultos que não saíam dos corredores com ar condicionado, já não são tão comuns naquele país.

A pandemia só acelerou essas tendências. Há várias lojas de departamento americanas entrando com pedido de concordata ou anunciando fechamento massivo de lojas, enquanto a Amazon nada de braçadas. Já há quem estime o fechamento de um terço dos malls americanos até o ano que vem.

É uma mudança e tanto. Esses gigantes do consumo surgiram nos EUA na década de 50, quando as famílias começaram a se mudar para os subúrbios. Aos poucos, aproveitando as vantagens da chamada economia da aglomeração, foram revolucionando o varejo e a forma de se fazer compras, tornando-se um elemento representativo da cultura daquele país e da vida moderna.

No Brasil, foi a partir da década de 80, em especial, que o conceito de shopping center se firmou e o número de unidades explodiu. Favorecidos pela maior densidade populacional nas grandes cidades e pela imagem de ilhas de segurança, foram lentamente passando do conceito original (um centro de compras) para um conglomerado de ofertas que foi incluindo, aos poucos, serviços, lazer e, nos últimos anos, experiências.

SANTO GRAAL

Nos Estados Unidos, nossa pesquisa identificou um fenômeno comum na fase terminal de um mall: os frequentadores percebem que ele está morrendo e o abandonam. Por esse motivo, incorporamos no modelo a hipótese de que esse fator poderia levar a uma profecia autorrealizável, criando uma espécie de espiral da morte.

Lá também são comuns os relatos de dificuldade de adaptação a um cenário mais turbulento. Não é tão fácil compreender as novas tendências de consumo e readaptar rapidamente o espaço físico e a oferta de lojas, serviços e experiências às novas demandas. Quem tem se dado melhor naquele país é quem atende uma clientela mais afluente –os shoppings mais ricos estão se reinventando pela aposta no estilo de vida, aglutinando no mesmo local atividades que vão de estúdios de ioga a microcervejarias.

Um pequeno parêntese. Essa ideia de captar as sempre mutáveis tendências de consumo e responder rearranjando ativos e competências organizacionais é a essência do conceito de capacidades dinâmicas, uma espécie de Santo Graal da literatura de gestão. É aquela ideia de que não apenas cada negócio começa a ficar obsoleto no instante em que nasce, mas também que é preciso torna-lo obsoleto propositadamente. Um enorme desafio. Fecha parêntese.

No Brasil, a grande mudança que se tenta implementar agora é o chamado omnichannel, ou a integração da experiência de consumo nos canais físicos e digitais. Na verdade, o concorrente dos shoppings nunca foi o varejo de rua, como já ouvi de executivos do setor. Eles concorrem mesmo é com tudo que oferece conveniência, lazer e boas experiências ao consumidor.

Finalmente, se a crise atual se prolongar muito, não é difícil imaginar que poderá haver morte de shoppings também por aqui, como havíamos estimado em nosso modelo para um cenário de recessão profunda.

Até hoje, esse foi um fato raro, mas aconteceu, por exemplo, na década de 90, com o Best Shopping, em São Bernardo do Campo (SP), que foi abandonado pelos clientes na medida em que novos e mais atrativos centros de compra abriam na capital paulista, mesmo a 20 quilômetros de distância.

A ironia é que a pressa em reabrir os shoppings na crise atual pode contribuir para uma agonia ainda maior no setor, caso as infecções por coronavírus aumentem. Protocolos de segurança são bem-vindos, mas o principal problema de uma reabertura mal calculada é aumentar a circulação e a aglomeração de pessoas nas cidades. Não custa repetir: o que destroça a economia é o vírus.

 

 

 

 

Por Hamilton Carvalho, 48 anos, estuda problemas sociais complexos. É doutor em Administração pela FEA-USP, mestre em Administração pela mesma instituição, membro da System Dynamics Society e da Behavioral Science & Policy Association.

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