Opinião – Por que o crédito não chega onde precisa?

14/07/2020 11:21

A sede do Banco Central, em Brasília; para autor, “credibilidade é, mais do que nunca, uma condição necessária”

A crise gerada pela pandemia da covid-19 motivou o Congresso a aprovar o “orçamento de guerra”, cujo objetivo é agilizar a execução de despesas para a saúde durante o estado de calamidade, mas sem que esses gastos adicionais misturem-se ao Orçamento da União. A emenda constitucional criou um regime fiscal extraordinário, e autorizou o Banco Central a melhorar a liquidez do mercado de capitais brasileiro, permitindo que compre títulos de empresas privadas no mercado secundário, incluindo os que fazem parte de carteiras de fundos e corretoras. Para que os bancos públicos sejam capazes de melhorar as condições do crédito no Brasil, e apoiar a retomada da economia, é essencial repensar suas formas de atuação, deixando claras as regras e os limites nas operações.

Os episódios mais recentes de desequilíbrios nos mercados evidenciaram a necessidade de se flexibilizar a atuação do setor público para minimizar os impactos sociais. A ampliação das alternativas do Banco Central para executar a política monetária deve ajudar muitas empresas nessa fase crítica a conseguirem recursos e manterem seus negócios.

O BC operar no mercado secundário é um exemplo doméstico do que ocorre em outras economias, em que alguns bancos centrais, em momentos específicos, dilataram suas capacidades de atuação monetária. Ou seja, assim como outros bancos centrais, o BC começa a pensar “fora da caixa” ao praticar medidas menos convencionais, indo além dos estímulos tradicionais, como redução das taxas de juros nominais e injeção de liquidez nos bancos.

Essas intervenções têm buscado frear os impactos sem precedentes da crise de saúde na economia real, em socorro às empresas não financeiras. O Banco Central Europeu (BCE), por exemplo, tem o programa de compras de ativos corporativos (Corporate Sector Purchase Programme – CSPP, na sigla em inglês), que existe na zona do euro desde 2016.

O CSPP consiste na compra pelos bancos centrais do sistema do euro de obrigações contraídas pelas empresas, ajudando essas organizações a obterem melhor acesso ao crédito ao reduzir os spreads, aumentar investimentos, criar empregos e, assim, apoiar o crescimento econômico.

Com a pandemia, o CSPP entrou no plano mais robusto de compra de ativos e de títulos do setor público e privado (Pandemic Emergency Purchase Program – PEPP), iniciado em março para minimizar os impactos da crise, e que deverá perdurar até o final de 2021. Apenas em junho, o BCE injetou mais de 600 bilhões de euros no programa, totalizando € 1.350 bilhões.

O Banco Central já regulamentou a medida para compra de títulos privados, e dará preferência aos papéis emitidos por micro empresas e empresas de pequeno porte (ME e EPP). O BC estabelecerá limites em sua carteira por emissor, por série de ativo, e por classe de risco, mas esta não será observada para os bens e direitos emitidos pelas empresas menores, segundo a autoridade monetária.

Diferentemente de crises passadas que se iniciaram no sistema financeiro, como em 2008, a atual exige que os governos adotem medidas mais ágeis e diretas de auxilio às empresas pequenas. Essas ações têm demandado, entretanto, mais cuidado com os limites e responsabilidades dos entes públicos envolvidos.

Na crise do subprime, o Federal Reserve Bank (Fed) avaliou a compra de títulos privados, mas como eram “tóxicos” em grande maioria, o banco central norte-americano desistiu quando verificou ser inviável fazer leilões competitivos sem ser acusado de algum favorecimento.

Em 1989, no Brasil, quando precisamos trocar o perfil da dívida pública devido ao fim da correção monetária, tivemos de fazer a preços fixos para não termos riscos sistêmicos nos mercados. Na época, como diretor do BC, minha decisão foi tentar fixar na curva de rendimentos os preços dos vários títulos com correção monetária, já que não existia volume de negócios no mercado para todos os vencimentos.

Também quando há saída de capitais do Brasil o Tesouro tem de comprar títulos públicos para evitar abertura exagerada dos rendimentos desses papéis. Às vezes é necessário realizar vários leilões de compra dos títulos para não haver acusação de favorecimento ao fixar preços. Obviamente, o Tesouro seria muito poupado se pudesse fazer essas operações a preços fixos.

O mesmo ocorre hoje no BNDES, uma paralisação para decidir sobre operações de empréstimos e compra de títulos devido à total segurança ética exigida pelas autoridades de controle.

A responsabilidade das autoridades nessas ocasiões tem de ser comprovada com credibilidade por compromissos assumidos no passado. Mais do que nunca a credibilidade é uma condição necessária.

Atualmente, como há identificação entre pessoas físicas e jurídicas nas operações, assim como dos funcionários públicos e da responsabilidade individual e pessoal, seria impossível fazer leilões a preços fixos. A falta de confiança nos agentes públicos poderia causar prejuízos tanto ao Tesouro quanto ao mercado financeiro.

No caso do BNDES, a demora para decidir sobre as operações de crédito e a burocracia que envolve os bancos privados dificulta que o dinheiro chegue onde agora é mais necessário, nos micro e pequenos negócios.

Nesse contexto, os bancos públicos estão cada dia menos úteis para emprestar.

Como o BNDES tem funding com a TLP, sem necessidade de preocupações com os retornos no curto prazo, pode ser repensando como um banco puramente atacadista, realizar operações de longo prazo, pois dilui o custo da TLP e consegue cobrar juros mais baixos. Para apoiar esse redirecionamento, é fundamental reduzir o tamanho de sua estrutura, principalmente de pessoal.

Já o Banco Central, o único emissor de moeda no país, nesse momento tinha de ter total independência para agir mais rápido, minimizar as penalidades à sociedade pela escassez de recursos, que podem gerar “quebradeira” desnecessária. Mas a independência do BC ainda está em análise no Congresso.

Essa independência não significa somente conceder mandatos à diretoria, como também definir suas responsabilidades e os conjuntos de regras a serem seguidas, o compliance.

Nessa crise é fundamental que a autoridade monetária tenha ampliado seu raio de atuação. A compra de títulos públicos e privados no mercado secundário é um ensaio de uma nova situação institucional do BC, que estará se aproximando da capacidade de atuação do FED, por exemplo.

O Banco podia ter liberado compulsórios com a obrigação das instituições financeiras concederem empréstimos para empresas menores, como fizemos várias vezes quando fui diretor. A prática pode representar uma intervenção, mas seria importante para desempoçar o dinheiro nos bancos durante a pandemia. A autoridade monetária não pode se ausentar nos momentos em que somente ela pode agir nas horas certas, salvar empresas e empregos.

 

 

 

Por Carlos Thadeu de Freitas Gomes, 72 anos, é economista-chefe da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo). Foi presidente do Conselho de Administração do BNDES e diretor do BNDES de 2017 a 2019, diretor do Banco Central (1986-1988) e da Petrobras (1990-1992).

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