Opinião – Era uma vez 1 desembargador que não se sujeitava à lei

23/07/2020 10:51

Caso do desembargador que insultou guarda municipal ao ser multado é evidência de que há algo errado com o país. Lei de abuso de autoridade tem falhas…mas acerta ao punir a ‘carteirada’

As democracias republicanas modernas trouxeram a alternância no poder mediante eleições, tirando de cena os reis e os vetustos sistemas absolutistas. Os novos sistemas passaram a se preocupar em impor limites ao poder do Estado.

Antes, a punição penal sem limites permitia penas degradantes, como o banimento e o degredo e até a pena de morte. Hoje, a conquista de direitos sociais, civis e políticos nos traz ao tempo civilizado da cidadania plena, do respeito aos direitos humanos, da criminalização efetiva ao abuso do poder.

Eis que, passados cinquenta e quatro anos desde a lei de abuso de autoridade (Lei 4898/65) uma nova lei foi aprovada pelo Congresso (13.869/19), com uma série de aspectos criticáveis, pois infelizmente ela dificulta o combate cotidiano à corrupção, criminalizando a cotidiana atividade interpretativa da lei por parte de magistrados e membros do MP.

Isto levou as Associações Nacionais do MP e da Magistratura e outras a arguirem a inconstitucionalidade desta lei perante o Supremo Tribunal Federal. E causou perplexidade a organismos internacionais, como a Transparência Internacional e a OCDE, que enviou uma delegação ao Brasil para questionar as autoridades em relação à aprovação desta lei.

Apesar de todos os diversos e graves aspectos criticáveis, nem tudo nela está perdido. Aprovou-se nesta lei, a louvável e republicana criminalização do “você sabe com quem está falando?”, da famosa “carteirada” prevista no artigo 33 do mencionado diploma legal.

Extremamente louvável, pois a conservação da humildade e consciência dos que são servidores do povo é absolutamente imprescindível. Portanto, dentro da lógica republicana de que todos aqueles que recebem poder devem ser controlados, a punição criminal da “carteirada” a mim soa absolutamente perfeita, vez que culturalmente o respeito a estas regras é extremamente difícil. Aí se incluem juízes, promotores, fiscais, policiais, etc.

Neste último final-de-semana, em Santos, o desembargador Eduardo Siqueira, diante da verdadeira autoridade da rua, o guarda civil que fiscalizava corretamente o uso de máscaras sanitárias, comportou-se como se não houvesse linha divisória entre o público e o privado. Como se sua conduta individual fosse algo restrito a seu livre arbítrio. Como se não fosse concebível a saúde pública ser protegida em relação a seus atos. Como se não existissem outras pessoas no mundo.

O desembargador, que desonrou a toga, transmitia a nítida impressão que em seu juízo não estaria sujeito à lei, talvez por se considerar um ser acima da lei, que não tem deveres (ignorando a isonomia constitucional), pode ter praticado o crime de desacato ao chamar o guarda publicamente de analfabeto, além do crime de tráfico de influência quando acessou pelo celular o secretário municipal de Segurança, superior hierárquico do guarda.

Mas, chama a atenção, a certeza de impunidade com que o magistrado rasgou a multa e saiu andando após o guarda autuá-lo, sob a lente que tudo registrou, publicizou e assim, eternizou, fazendo valer a regra constitucional prevista em seu artigo 37, num elogiável e corajoso exercício de cidadania.

Algumas semanas atrás, igualmente verificando o uso de máscaras, desta feita no Rio, um outro digno fiscal abordou um casal e se dirigiu ao homem chamando-o de cidadão recebendo como resposta um insulto da mulher.

“Cidadão, não! Ele é engenheiro. Muito melhor que você!” (como se cidadão fosse palavra que significasse e evidenciasse profunda desonra).

Verificações feitas, o tal engenheiro, de classe média (ou média-alta) havia pedido fraudulentamente (e tinha recebido) o auxílio emergencial. E o fiscal (supostamente pior que o engenheiro fraudador) era mestre e doutor pela UFRJ. E mais de seiscentas mil pessoas no Brasil agiram desta forma em condição equivalente.

O abuso do desembargador, a fraude do engenheiro e a postura de sua esposa frente à ideia de cidadania nos mostram que há algo de podre no Brasil. Na Dinamarca havia também, como registrou Shakespeare em Macbeth, mas lá os rumos mudaram e hoje ela é campeã mundial anticorrupção, em felicidade do povo, em inovação e outros indicadores. Será que conseguiremos virar este jogo?

 

 

 

 

Por Roberto Livianu, 51, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, é articulista da Folha de S. Paulo e do Estado de S.Paulo e é colunista da Rádio Justiça, do STF

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