Opinião – Os consertos que estragam, do rodoanel a Bolsonaro

27/07/2020 13:46

Obras em 2017 do rodoanel norte, em São Paulo: ”construção amplia o problema que se propôs a resolver”, diz Carvalho

Muitos pais e mães (mas não todos) sabem que ceder à birra de uma criança é má ideia. Com o tempo, aumentam as chances de se criar um pequeno ditador mimado, que consegue tudo o que quer à base do escândalo.

Essa ideia de uma solução ou um conserto que estraga é conhecida na literatura de pensamento sistêmico como um arquétipo, isto é, uma estrutura que é comum a diversos problemas sociais e organizacionais, mas que, ao contrário do exemplo da birra, é difícil de ser reconhecida na prática.

A ideia central do arquétipo consertos que estragam (fixes that fail) é que nós, ao percebermos os sintomas dos problemas, tentamos tapar a sangria desatada com algum band-aid. Porém, como geralmente esses curativos não enfrentam as causas reais do desconforto, o máximo que conseguimos é a ilusão de tê-lo resolvido. Com o passar do tempo, os sintomas reaparecem e de forma mais forte.

Lógica é a mesma da criança birrenta
Rodoanel transpira Brasil pelos poros
Voto antissistema deve voltar em 2022
Soluções devem ir além dos band-aids

Vou dar dois exemplos: o rodoanel em São Paulo e a eleição de Jair Bolsonaro. A figura abaixo ilustra a ideia:

Já discutimos extensivamente as deficiências do rodoanel como política pública neste espaço.

O rodoanel paulista é um caso curioso porque está morrendo em vida, ainda antes de ser completado (falta o trecho norte para se tornar, de fato, um anel viário). Isto é, está sendo desvirtuado de seu propósito original, que era o de ser uma rota restrita de desvio para os caminhões que apenas cruzam a capital paulista, tornando-se a sonhada solução para o trânsito e a poluição insuportáveis da cidade.

A obra, muito atrasada, transpira Brasil por todos os seus poros. Está relacionada a pesadas acusações de corrupção, falhas de construção e vai custar bem mais caro do que o plano original, além de estar associada a fenômenos típicos do país, como a ocupação irregular de terrenos e episódios de violência contra motoristas.

Desde o início, o projeto sofreu pressão política para construção de novos acessos em cidades do entorno, o que, além de alterar a proposta original, pode gerar uma corrida ao fundo do poço, pois cria-se precedente. Mais ainda, com a pressão para a construção de postos de gasolina e outras conveniências e acessos, o rodoanel vai se tornar, em poucas décadas, uma versão gigante do entupido minianel viário hoje existente na cidade de São Paulo.

Em outras palavras, como já aconteceu em intervenções similares nos EUA e no mundo, sua consequência prática vai ser espalhar a ocupação urbana por um espaço territorial muito maior, produzindo, no longo prazo, mais trânsito, a mesma chaga social que se propôs a enfrentar. De forma não surpreendente, a obra parece ter apoio popular ou não estaríamos falando aqui de um arquétipo tão comum a outras situações intratáveis nas nossas sociedades.

O aspecto central do arquétipo, lembremos, é que o band-aid sempre piora o problema de fundo. Isso é bem ilustrado pelo nosso segundo exemplo, a eleição de Bolsonaro. Entre os motivos comumente apontados para sua vitória, estão o combate à violência e uma luta difusa contra o “sistema”.

Porém, não há nada na gestão federal que sugira uma mudança qualitativa no enfrentamento dessas questões. Há retrocessos claros, como as medidas que favorecem o aumento do estoque de armas em poder da população, que tendem a piorar a violência no longo prazo. E o centrão já deu os braços ao governo.

No frigir dos ovos, o mesmo desconforto social que levou à eleição de Bolsonaro deve se manifestar daqui a dois anos, mas o país estará, ao que tudo indica, em condições piores.

Como esperado, o tempo decorrido até que as consequências não previstas apareçam praticamente inviabiliza o aprendizado coletivo. Assim, quando o problema de fundo inevitavelmente piora e os sintomas se agravam, desconfiamos que isso tem outras causas e tendemos a apoiar novos curativos.

Um bom exemplo, para voltar ao trânsito, vem da cidade de Houston (EUA). Depois que o trânsito aumentou em mais de 30% na cidade, seguindo-se à expansão da Katy Freeway (estrada que corta a cidade) para absurdas 23 faixas há alguns anos, não faltou quem sugerisse criar a 24ª pista… e hoje a rodovia tem nada menos do que 26 faixas congestionadas.

A lição é clara: sem incorporar o pensamento sistêmico, as sociedades modernas continuarão tratando seus problemas como pais despreparados lidam com crianças birrentas.

 

 

 

 

Por Hamilton Carvalho, 48 anos, estuda problemas sociais complexos. É doutor em Administração pela FEA-USP, mestre em Administração pela mesma instituição, membro da System Dynamics Society e da Behavioral Science & Policy Association.

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