04/08/2020 00:01
”Vivemos sob uma anarquia constitucional, algo, creio, novel na História para um país cujos intelectuais consideram democrático, com que nossos respeitáveis constituintes atuais pactuam”
Os constituintes de 1988 conseguiram um feito inigualável: instituir a anarquia administrativa numa constituição.
Quem acompanha o desenrolar das medidas antipandemia fica boquiaberto: como pode tanta gente dar tanto palpite que tem de ser observado pelos administradores públicos sob pena de infringirem a lei?
Fala-se muito em seguir os ditames da ciência e que Bolsonaro é um sacrílego porque não os observa. O que dizer dos procuradores do MP e dos defensores públicos, e dos juízes que os levam a sério, quando se intrometem na administração pública e obrigam o governador, o prefeito e até o presidente da República, a praticar um ato que eles, por mandato popular constitucional, contestam?
Os membros eleitos da administração pública respondem por seus atos perante o eleitorado. Podem perder seus empregos se não gostarmos do que fizeram. E esses outros? São vitalícios, se alguém morrer ou perder propriedade por força das decisões que obrigaram o administrador a tomar, fica por isso mesmo. Ninguém apura, ninguém pune. E cada um deles pode obter de qualquer juiz qualquer coisa que lhe der na telha. E a decisão desse juiz pode ser reformada quantas vezes algum outro juiz hierarquicamente superior quiser, o que demonstra que ninguém sabe quem está certo. Nesse vai e vem jogam com a honra e a paciência de todo administrador público e com a vida das pessoas.
Olhem o que aconteceu em Brasília, de acordo com o Correio Braziliense de 9/6/20, que se repete no Rio de Janeiro e em outras cidades e oportunidades: “O desembargador do TRF-1 Daniel Paes Ribeiro reconsiderou a decisão tomada pelo juiz substituto Roberto Carlos de Oliveira…que havia suspendido a determinação da juíza Kátia Balbino de Carvalho, da 3ª Vara Cível do DF, que escalonava, de 15 em 15 dias, a reabertura do comércio na capital. O MPF, no entanto, recorreu e teve o pedido para que a Justiça Federal analise as medidas de isolamento social no DF aceito”. E ainda cabe recurso.
De repente, um procurador do MP e alguns juízes se arvoram em técnicos em conter pandemia de covid-19. Mas cada um tem uma palpite diferente. Quem tem razão? Isso é seguir os ditames da ciência? É uma confusão, não? Marca registrada de uma anarquia.
Por que é assim? Porque a Cf88 determina que um procurador do MP é um “independente funcional”, pode fazer o que quiser para constranger quem lhe apetecer sobre qualquer assunto incluído na nossa “ordem jurídica” sem qualquer responsabilidade pelo resultado na vida e na propriedade dos cidadãos, e porque também aceita que os juízes podem errar à vontade nas suas sentenças, inclusive contra a lei, sem o menor impacto em suas carreiras ou em seus vencimentos e vantagens.
“Anarquismo é uma ideologia política que se opõe a todo tipo de hierarquia e dominação, seja ela política, econômica, social ou cultural”. (International Encyclopedia of Political Science. Thousand Oaks: Bertrand Badie. 2011), que é o que acontece por aqui, onde não se respeita hierarquia nem se estabelece um limite à intromissão dos procuradores do Ministério Público na nossa vida, nem se cobra dos juízes submissão à lei e contribuição à segurança jurídica.
Vivemos sob uma anarquia constitucional, algo, creio, novel na História para um país cujos intelectuais consideram democrático (será?), com que nossos respeitáveis constituintes atuais pactuam (vide CF88 Art. 60).
Por Sérgio Moura, advogado, ex-executivo da IBM Brasil, consultor em políticas públicas, autor dos livros Chega de Pobreza (edição do autor, 2006) e Podemos ser prósperos – se os políticos deixarem (edição do autor, 2018), Fellow do Institute of Brazilian Issues da George Washington University; [email protected]