05/08/2020 00:34
Pessoas fazem fila junto à Caixa Econômica Federal: ”Desigualdades são um projeto. Festival de desvios de recursos. País parece desistir de controles”, diz Kupfer
Aqui a pobreza é enorme, o número de miseráveis é absurdo e a desigualdade, chocante. A desigualdade de renda coloca o Brasil nos pontos mais altos de um indesejado ranking mundial, embutindo uma vasta lista de desequilíbrios –raciais, de gênero e de acesso a oportunidades.
Mais de 50 milhões de brasileiros, um em cada quatro, na população total, vivem em situação de pobreza. Na extrema pobreza, são 13,5 milhões de pessoas, contingente que representa 6,5% da população.
Entre todos os países do mundo, a renda só não é mais concentrada do que no Brasil em apenas um, o milionário Catar. Lá, o 1% mais rico detém 29% da renda total, enquanto aqui esse 1% fica com 28,3% do que é produzido por toda a sociedade. Os 10% mais ricos, no Brasil, concentram mais de 40% da renda total.
É tal a desigualdade que o mais pobre entre esses 10% mais ricos dispõe de uma renda mensal equivalente a tão somente três salários mínimos. Não, não há erro na informação, tanto a renda é concentrada. Afinal, metade da população sobrevive com pouco mais de R$ 400 mensais, o que hoje vale 40% do salário mínimo.
As desigualdades atingem com mais intensidade pretos e pardos, assim como crianças. Pretos, pardos e crianças são três em cada quatro pobres. Mulheres também são discriminadas. Elas enfrentam maiores dificuldades de acesso a oportunidades. No mercado de trabalho, por exemplo, até quando mais qualificadas do que homens, mulheres recebem no mínimo 40% menos, pelo mesmo trabalho.
Desigualdades tão arraigadas não podem ser –e não são– obras do acaso. Parodiando Darcy Ribeiro, e substituindo a educação pelos desequilíbrios sociais, as desigualdades, no Brasil, são um projeto bem sucedido de exclusão social. Na situação extrema da pandemia de covid-19, exemplos não estão faltando dessa lamentável realidade —com requintes de imoralidade.
Assiste-se a um festival de desvios de materiais e de recursos das unidades de saúde dedicadas ao combate da covid-19. Sem falar na ação despudorada de grupos de pressão para a venda de equipamentos, como respiradores, nem sempre mais adequados ou mesmo em bom estado. Aproveitando o momento, empresas inundaram o mercado, com a aprovação do órgão regulador, de testes rápidos caros e de eficiência duvidosa.
Não bastam os desvios e a exploração oportunista da pandemia. Há também a descoberta de que 620 mil pessoas se candidataram e obtiveram, indevidamente, o auxílio emergencial dirigido à sustentar, temporariamente, a sobrevivência de pessoas econômica e socialmente vulneráveis joga luz sobre uma imoralidade sem palavras para descrevê-la.
O relator da ação do TCU (Tribunal de Contas da União) que localizou essas pessoas, ministro Bruno Dantas, considera que, embora em número absoluto alto, em relação ao total de beneficiados, as irregularidades envolveram número relativamente baixo de pessoas. Dos 50 milhões inicialmente previstos no cadastro da Caixa para receber o auxilio, de fato, “apenas” 1,2% são suspeitos de fraude, cujo montante não chega a R$ 1,2 bilhão. Sem dúvida, um valor muito pequeno diante dos mais de R$ 150 bilhões previstos para os primeiros três meses do auxílio.
De qualquer maneira, são 620 mil, mais de meio milhão de pessoas sob suspeita de praticar a última das imoralidades –disputar, sem necessidade, uma bolsa de sobrevivência com concidadãos desvalidos. No grupo, de acordo com levantamento do TCU estão 230 mil donos de empresas com pelo menos dois funcionários e 220 mil pessoas que já recebem outros benefícios, por exemplo, aposentadoria do INSS. Não só: mais de 130 mil servidores públicos, militares e até 17 mil falecidos se inscreveram, foram aprovados e receberam o benefício.
Como, infelizmente, não era difícil de prever, o Brasil está vivendo o pior da emergência sanitária, econômica e social causada pela covid-19. Sem comando e envolto numa permanente crise política, o país parece prestes a desistir das medidas de contenção da pandemia e resignado a assistir, inerte, à propagação do contágio, da doença e das mortes.
Se a explosão da crise sanitária se confirmar, as demais crises, inclusive a política, não escaparão de se agravar, prolongando sacrifícios e perdas. Em horas dramáticas como as que se está vivendo é que o valor de uma sociedade coesa e decente se apresenta. Nossas desigualdades encruadas, abissais e estruturais confirmam que ainda não foram cumpridos os requisitos de uma sociedade com essas características —e que, por isso, o atraso nos persegue.
Por José Paulo Kupfer, 70 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve colunas de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão, lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e Ordem dos Economistas do Brasil. Também é um dos dez “Mais Admirados Jornalistas de Economia”, nas votações promovidas pelo site J&Cia. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.