05/08/2020 00:20
O linguista , psicólogo e autor Steven Pinker: ”A carta contra Steven Pinker e a ditadura da maioria”, diz Paula Schmitt
É com pesar que informo que este artigo trata de um assunto que já abordo há tempo, mas que continua cada vez mais ameaçador. É sobre política identitária, cultura do cancelamento e a hegemonia do ofendido. É sobre a criação de uma sociedade “reformada,” uma nova civilização que finge proteger os mais necessitados, mas que está sendo construída sobre os alicerces instáveis dos emocionalmente fracos, onde a lógica que impera é determinada pela interpretação mais desequilibrada, mais infantil e com a maior dose de má-fé.
Não pensem que tenho prazer em falar desse assunto. Pra mim, discutir identidade é tão absurdo quanto debater sobre abacaxi na pizza –cada um tem um gosto, e cada gosto é subjetivo, pessoal e intransferível. O problema, obviamente, é que estamos à beira de ver o abacaxi na pizza ser obrigatório por lei, e até eu, que gosto da combinação, vou lutar pelo direito de não comê-la.
Note que a expressão que cunhei é “hegemonia do ofendido”, não hegemonia do mais fraco. Isso é um ponto crucial para entender a situação. Nenhum partícipe dessa histeria coletiva tem intenção de proteger os mais fracos, e sim os que mais reclamam, os que gritam mais alto, os que conseguem mobilizar mais gente –em outras palavras, os que têm mais poder. Não é mera coincidência o fato de não vermos nenhum protesto ou hashtag defendendo pobres, idosos ou crianças. Mas na semana passada, a lucidez teve uma pequena vitória.
São incontáveis os exemplos de cancelamento, mas o caso que hoje eu relato se destacou por ter como alvo Steven Pinker, linguista de Harvard, psicólogo e autor de vários best-sellers de ciência popular. Pinker foi alvo não de um colega, mas de mais de 600 deles. Em carta endereçada à LSA (Sociedade Linguística da América), “membros da comunidade linguística” pedem que Pinker seja retirado das listas de “acadêmicos com distinção” e de especialistas que a sociedade recomenda para lidar com a imprensa.
A carta demanda, verbatim, que a LSA “se distancie” de Pinker porque ele estaria em desacordo com seus princípios de “justiça racial.” Os assinantes da carta de acusação então enumeram 6 situações em que o racismo de Pinker estaria comprovado. Os exemplos são embaraçosos, mas reveladores: eles ilustram a seletividade desonesta de quem iniciou o tribunal de exceção pelo veredito, garimpando retroativamente tudo que puder reforçar a certeza que eles já têm. Isso fica ainda mais fácil, claro, quando o autor é prolífico –quanto mais livros publicados, mais alta a chance de que se encontre algo desabonador. Como diz a frase atribuída ao Cardinal Richelieu, “dê-me 6 linhas escritas pelo homem mais honesto e eu vou encontrar o suficiente para enforcá-lo”. Para linguistas, esse estratagema deve ser ainda mais fácil.
O primeiro exemplo do suposto racismo de Pinker foi um tweet de 2015 em que ele diz “Dados: a polícia não atira em negros desproporcionalmente”. O tweet dava o link para um artigo do New York Times no qual o autor examina estatísticas oficiais mostrando que, por um lado, 31,8% das pessoas que levaram tiro da polícia norte-americana eram negros. Isso é uma proporção duas vezes maior que a fatia de negros na população total, 13,2%. Mas por outro lado, os negros também compõem uma parcela maior entre aqueles que são detidos pela polícia (28,9% dos detidos são negros).
Para o autor do artigo, os mesmos números que revelam que negros sofrem mais violência da polícia, comparados à sua parcela na população, também revelam que eles são presos com mais frequência, e portanto têm mais chance de sofrer com a violência policial. A pergunta a ser feita então seria: por que negros são presos com mais frequência? A resposta pode ser “por racismo da polícia”, mas também pode ser porque negros nos EUA cometem mais crimes. E se for essa a resposta, então a pergunta seguinte pode ser: por que eles cometem mais crimes? Porque têm menores salários, e menor índice de escolaridade, por exemplo. E por que tem o menor índice de escolaridade e salários? Por causa do racismo político que confina negros em áreas sem escola, sem empregos etc. Isso aqui é só um exercício imaginário em busca das respostas –que precisa começar com as perguntas certas. Para quem tem interesse, aqui vai um artigo mais recente sobre esses dados.
Os pecados de Pinker foram analisados –e desbancados– pela Reason, e não cabem nesta minha coluna, mas encorajo a leitura para que se entenda a que ponto chegou essa psicopatia grupal. Quero no entanto falar de só mais um desses exemplos para alertar sobre o que pode estar a caminho do Brasil, esse país onde até as ciências sociais são importadas, mesmo que não se adequem à nossa situação, ou sejam muito inferiores ao que produzimos.
Acho importante estarmos preparados porque política e sociedade têm que ser analisadas como filme, não foto. Se a imagem estática da situação não lhe assusta, tente examinar a progressão desse filme e prever para onde ele vai. Veja em que parte do filme estávamos quando Fernando Henrique Cardoso fez o papelão vergonhoso de reclamar oficialmente com a FOX por uma piada sobre o Brasil em um episódio dos Simpsons. Veja quem se ofendia com os que se recusavam a chamar Dilma de presidenta, quando já temos uma palavra que comporta todos os gêneros. Veja ainda se essas pessoas eram as mesmas que se recusam a aceitar a palavra poetisa, porque ela diminui a poeta mulher.
Nos EUA, não é mais necessário ver para onde o filme vai, porque o filme já chegou lá. Não sou alarmista, ainda que às vezes eu pareça o filho abandonado da Cassandra com a Ave de Mau Agouro, mas a situação nos Estados Unidos é assustadora para qualquer pessoa minimamente honesta e atenta –e aqui está Noam Chomsky e dezenas de outros pensadores que não me deixam mentir. Eles assinaram uma carta aberta que denuncia a “intolerância a visões contrárias, a moda da humilhação pública, e a tendência de dissolver questões complexas em uma certeza moral que cega” e condena “os gritos por rápida e severa retribuição em resposta a supostas transgressões em palavras e pensamento”.
Até recentemente, pouquíssimos na esquerda tiveram a inteligência ou coragem de denunciar o que vem acontecendo. O silêncio generalizado da imprensa brasileira é prova disso, exceção honrosa feita à imprensa negativamente classificada como “de direita”. Quem sabe agora, com a autorização de Chomsky, a galera mais covarde se manifeste. Mas voltando à diatribe contra Pinker, no quinto exemplo da carta ele é acusado de racismo por meio de um conceito que deveria causar arrepios na espinha de qualquer pessoa sensata: uma invenção distópica e orwelliana chamada de dogwhistle, ou “apito de cachorro”.
Segundo os linguistas X-9 caçadores-de-bruxas que denunciaram Pinker à sua associação, Pinker usou um truque em que ele consegue ser racista e anunciar que é racista, mas sem que seus inimigos notem. É daí que vem a expressão “apito de cachorro” –como um assobio ultrassônico, só os cachorros ou comparsas eugenistas têm capacidade de receber a mensagem. Sabe aqueles direitistas à beira de um ataque de esquizofrenia que saem à cata de “símbolos secretos” feitos por membros dos Iluminatti e revelados “secretamente” no Instagram? Então. Na versão da esquerda, eles são essa gente cheia de energia e com muito tempo livre que sai por aí procurando algum racista que consiga assobiar e dar uma piscadinha para o comparsa ao mesmo tempo.
No caso de Pinker, seu assobio teria sido o seguinte: ele usou a expressão “violência urbana”, em clara tentativa de “enviar uma mensagem a um grupo [ao qual não pertence] enquanto envia uma segunda mensagem para seus semelhantes”. Mas o que essa expressão tem de racista?, perguntam os inteligentes. A carta dos linguistas explica: “[A palavra] ‘urbana’, enquanto dogwhistle, sinaliza um apoio disfarçado e, especialmente, refutável, a teorias que essencializam pessoas negras como inferiores e, frequentemente, como criminosas”. É isso aí, pessoal: quem precisa de racismo visível quando temos o invisível pra condenar?
Mas a LSA, diferente de instituições acadêmicas que sucumbiram à pressão do rebanho raivoso, não achou que existiam provas suficientes contra Pinker para o ostracismo acadêmico.
Isso de ver racismo onde se espera –onde se deseja– que ele exista me lembra uma vez no Twitter em que eu mencionei que confiava mais num jornalista que eu conheço do que no intelectual árabe conhecido como Angry Arab (árabe bravo), que já palestrou na universidade onde fiz meu mestrado, AUB, no Líbano. Em um tweet, eu disse a uma pessoa que debatia comigo que o pseudônimo do Angry Arab era muito apropriado. É óbvio que eu estava me referindo ao “angry”. Mas o arabista imbecilizado, Asa Winstanley, não teve dúvida: me chamou de racista, já que –ele presumiu– eu só poderia estar me referindo à inferioridade árabe do homem, não a seu estado de espírito.
Dá pra ver quem nessa conversa é o preconceituoso. Mas pra terminar isso aqui numa nota mais leve, e muito mais iluminada, traduzo um tweet de Marcellus Wiley, ex-jogador da NFL. Sob as palavras “fique esperto”, Wiley postou uma das sínteses mais simples e profundas que já vi:
“A América não é dividida por raça, cor, gênero, ou orientação sexual. A América é dividida entre sábios e tolos. E os tolos se dividem entre si por raça, cor, gênero, ou orientação sexual“.
Por Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em ciências políticas e estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos.