14/08/2020 11:29
Entregadores de moto, em Brasília: ”Reflexão sobre economia sob demanda e Brasil deve repensar a regulação”, defende Diego Barreto, executivo do Ifood
Alguma coisa está fora da ordem. É assim que alguns grupos da sociedade costumam tratar a economia sob demanda (gig economy). É assim que parte da opinião pública percebe os negócios promovidos pelo desenvolvimento tecnológico.
De fato, esses empreendimentos parecem estar fora da ordem tradicional, pois surgem criando parâmetros para a construção de ambientes de negócio que fogem daqueles com os quais estamos acostumados a conviver. E sempre vão incomodar os que se alimentam da saudade.
Ao contrário do que promulgam as vozes que adoram apenas o presente, a economia das plataformas digitais é promotora de inclusão socioeconômica. Trabalhadores à margem das cadeias produtivas tradicionais podem organizar a vida para prestar serviço a vários demandantes da forma que lhes for mais conveniente. Empresas têm a oportunidade de expandir sua base de clientes. Consumidores podem escolher as experiências que são mais adequadas às suas necessidades e possibilidades. A tecnologia, por meio de plataformas digitais, nada mais é do que uma facilitadora eficiente e transparente de um relacionamento vantajoso entre esses sujeitos. É uma equação de ganha-ganha.
E, antes de qualquer juízo de valores, um bom diálogo propositivo sempre começa por fatos e dados.
Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), de 0,5% a 2% da força de trabalho mundial (17 milhões a 66 milhões pessoas) está envolvida com serviços por plataformas digitais. Embora a proporção seja relativamente baixa, o número desses trabalhadores que usam aplicativos cresce rapidamente, principalmente devido ao fácil acesso e à flexibilidade oferecida. A economia sob demanda inclui todos, independentemente de sexo, cor, idade, classe social ou experiência prévia. As chances são iguais.
Relatório do Instituto Global McKinsey estimava que, antes da pandemia, os trabalhadores independentes estavam assim divididos na economia sob demanda:
- agentes livres, para quem a economia sob demanda é sua renda primária e que estão trabalhando nela por escolha (30% do total de trabalhadores independentes);
- assalariados que, por opção, estão complementando a principal renda com o trabalho na economia sob demanda (40%);
- provisórios, para quem a economia sob demanda fornece a renda primária, embora eles preferissem ter um emprego tradicional (14%);
- amarrados financeiramente, que estão complementando a principal renda com o trabalho na plataforma, a fim de sobreviver, embora desejassem não precisar disso (16%).
A crescente automação das atividades produtivas decorrente da 4ª Revolução Industrial inevitavelmente deixará uma quantidade expressiva da mão de obra sem função. Hoje, segundo “The Future of Jobs Report – 2018”, do Fórum Econômico Mundial, 71% das horas despendidas na produção de bens e serviços correspondem a trabalho humano. As máquinas são responsáveis pelos restantes 29%. Em 2025, a estimativa é que as taxas sejam de 48% e 52%, respectivamente. Os dados decorrem de pesquisa realizada com 313 empresas de 20 países que atuam globalmente e têm uma base de 15 milhões de trabalhadores.
No 1º estudo brasileiro que dimensiona o tamanho do impacto da automação nos empregos do país (“Na Era das Máquinas, o Emprego é de Quem? Estimação da Probabilidade de Automação de Ocupações no Brasil”), pesquisadores do Laboratório de Aprendizado de Máquina em Finanças e Organizações da UnB (Universidade de Brasília) avaliaram 2.602 ocupações brasileiras e concluíram que 54% dos empregos formais estão ameaçados pela adoção de robôs e máquinas inteligentes nos processos produtivos (ALBUQUERQUE, SAAVEDRA, MORAIS, ALVES E YAOHAO, 2019).
Se todas as empresas decidissem incorporar as tecnologias já existentes, 30 milhões de postos de trabalho com carteira assinada seriam fechados até 2026.
Por outro lado, esta gritante e ameaçadora realidade social que bate à nossa porta não tem sido tratada com a atenção que merece. Neste momento, por exemplo, diante das justas reivindicações dos entregadores que trabalham com aplicativos de delivery de alimentação, parte da classe política, dos veículos de comunicação e dos acadêmicos está olhando a árvore e perdendo a dimensão da floresta, pois é inexorável a adequação do Brasil à agenda do século 21, a qual indica que o trabalho com plataformas poderá ser parte da solução para os desafios do futuro do mercado da mão de obra.
A demonização dos aplicativos por setores que se apegam a um padrão regulatório estabelecido durante o processo de industrialização brasileiro não contribui para um debate estratégico que o país deve enfrentar. Não há dúvida de que estamos atrasados na abordagem da pauta. A União Europeia, por exemplo, desde abril do ano passado, adotou normas para reduzir a vulnerabilidade e assegurar transparência nas relações da economia sob demanda. Lá, o rendimento principal de 2% dos adultos vem desses negócios. Outros 8% complementam sua renda principal trabalhando com aplicativos. Se a sua reação é de que esses percentuais são baixos, vale uma reflexão: no Brasil esses índices corresponderiam a quase 10 milhões de trabalhadores sendo impactados positivamente, caso esse fosse o caso aqui.
É preciso repensar a regulação, portanto, para acolher as inovações que estão postas para a sociedade num contexto distinto do que até então era dado como o “normal”. E, obviamente, empresas, autoridades públicas e formuladores de políticas públicas não podem incorrer em erros do passado. É inaceitável falhar na busca de soluções para que as plataformas possam se expandir com responsabilidade social e oferecer uma contribuição cada vez mais positiva à nova economia.
Para não ficarmos de fora da ordem futura, Estado, plataformas e trabalhadores devem se dispor à cocriação e à corresponsabilidade sobre os novos paradigmas que vão orientar as relações em ambientes de negócio criados pelo desenvolvimento tecnológico. Devemos lembrar das palavras do professor Thomas Sowell, economista da Universidade de Stanford (EUA): “Quando as pessoas querem o impossível, apenas os mentirosos podem satisfazê-las”.
Por Diego Barreto, 37 anos, é CFO e VP de Estratégia do iFood. Tem MBA pelo IMD (Suíça), com foco em estratégia e liderança, é especialista em finanças pela Fipecafi/USP e também bacharel em direito pela PUC-SP. Foi executivo da AES, OAS, Suzano e Ingresso Rápido. É mentor de mais de 30 startups em diferentes países.