15/08/2020 12:14
”Brasil discute conceder administração de presídios à iniciativa privada; exemplos dos EUA servem de alerta; Brasil precisa de discussão séria”, destaca Schmitt
”Um caminho sem volta”.
Foi assim que Martha Seillier, secretária especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia, referiu-se à adoção de um modelo privado para as prisões no Brasil. Mas para onde esse caminho sem volta vai nos levar? Eu arrisco uma resposta: para um inferno de tragédias incalculáveis, porém bastante previsíveis.
Antes de continuar, eu quero deixar claro como me posiciono na questão da punição para crimes com vítimas: sou a favor. Eu não estou entre aqueles que acham que no Brasil necessariamente prendemos muito. Eu acho que no Brasil prendemos errado. De fato, eu sou quase hamurabiana: olho por olho, dente por dente. E isso não é porque eu seja vingativa –é porque eu acredito numa das leis mais inquestionáveis da natureza, de eficiência comprovada com crianças, animais, criminosos, amantes, e em praticamente todas as relações interpessoais e profissionais: a punição desencoraja o erro; a premiação encoraja o acerto.
A razão de se punir o criminoso X não é apenas impedir que ele cometa o crime de novo, mas dissuadir o criminoso Y de tentar a mesma coisa. E é exatamente por causa dessa convicção que sou contra a privatização das prisões –porque o oposto também é verdadeiro. Essa é uma lei quase absoluta da lógica de mercado: ofereça um incentivo financeiro para a solução de um problema, e o problema magicamente aumenta. Foi o que aconteceu na Pensilvânia quando criaram uma prisão privada para menores de idade.
Pelo menos de 2004 a 2008, cerca de 2.500 menores em Luzerne, na Pensilvânia, foram presos sem que merecessem a condenação. Crianças de até 12 anos de idade foram encarceradas por desvios tão irrelevantes como zombar do diretor da sua escola na internet, ou xingar a mãe de um colega de escola, ou por serem pegos (falsamente) com um cachimbo de maconha.
Procedimentos obrigatórios, como a presença de advogado ou o cumprimento de certas garantias da Corte, foram corrompidos, forjados ou totalmente ignorados. Isso aconteceu porque os juízes Mark Ciavarella e Michael Conahan foram subornados para condenar os menores à prisão, já que a administração da prisão –uma empresa privada– tinha seu lucro diretamente associado ao número de prisioneiros em suas unidades. Quanto mais indivíduos na cadeia, maior era seu faturamento.
O caso ficou conhecido como Kids for Cash, “crianças em troca de dinheiro”. Ele só foi possível, obviamente, porque foi precedido por uma lógica anterior de “dinheiro em troca de crianças” –a comodificação do indivíduo levada a níveis impensáveis. E as consequências foram trágicas, e com duração muito mais longa do que o tempo de detenção. Nesse vídeo, a mãe de um dos condenados, Edward Kenzakoski, agride verbalmente o juiz nas escadas do tribunal. Seu filho cometeu suicídio anos depois de ser colocado na cadeia por algo que não cometeu. “Meu filho não tá aqui! Ele tá morto! Por causa dele [o juiz]! Ele arruinou a minha vida! Eu quero que ele vá pro inferno e apodreça lá pra sempre. Você lembra do meu filho? Campeão de luta livre? Ele morreu! Ele deu um tiro no coração. Seu lixo humano!”
Todos sabemos que no Brasil já existe incentivo indevido para a prisão –assim como existe para a soltura. Grupos criminosos compram juízes para que a sentença lhes favoreça, ou para que prejudique um inimigo. Políticos e empresários oferecem favores, ou fazem ameaças, para ter o veredito que esperam. A tragédia da impunidade de culpados e da punição de inocentes é uma das coisas mais tristes no nosso país. Mas com a criação de empresas privadas que se beneficiam da condenação, é quase certo que as condenações vão aumentar, independentemente da culpa do condenado. E essa motivação intrínseca da condenação não vai ser mais algo individual, caso a caso –vai ser em massa. Nos EUA, esse estímulo já vem influenciando a realidade em várias esferas, inclusive legislativa, transformando o país numa distopia onde a falência social é um caso de sucesso financeiro.
Segundo este artigo do Washington Post, publicado em 2015, as duas maiores prisões comerciais (for profit ou por-lucro) dos EUA pagaram oficialmente mais de US$ 10 milhões desde 1989 para campanhas políticas, e “gastaram mais de US$ 25 milhões em lobby”. O total da receita anual dessas duas empresas, GEO e CCA (renomeada CoreCivic) “é de US$ 3,3 bilhões, e a população de presidiários em suas prisões privadas mais que dobrou de 2000 a 2010. […] Existe hoje um total de 130 prisões privadas no país com cerca de 157 mil camas.” Isso é ainda uma pequena fração do total de prisões nos EUA, pouco mais de 8% da população prisional. E essa porcentagem vem caindo, possivelmente porque os norte-americanos estão se dando conta de que prisão privada talvez não seja a melhor solução.
Pra quem não consegue adivinhar o que essas empresas esperam dos políticos que apoiam, repito aqui as palavras da própria CoreCivic, então CCA, no seu relatório anual de 2014.
“A demanda pelas nossas prisões e serviços poderia ser afetada negativamente pelo relaxamento do policiamento, leniência nas sentenças e critérios para liberdade condicional, […] e com a descriminalização de algumas atividades que são atualmente proibidas pelas nossas leis criminais. Por exemplo, qualquer mudança no que diz respeito a drogas e substâncias controladas ou imigração ilegal poderia afetar o número de pessoas presas, condenadas e sentenciadas, assim potencialmente reduzindo a demanda pelas nossas unidades correcionais para abrigar os presos. […] Leis vêm sendo propostas em várias jurisdições que poderiam diminuir a sentença mínima para crimes não-violentos e que podem liberar prisioneiros mais cedo por bom comportamento.”
Em alguns Estados, os contratos feitos entre governo e empresa privada exigem um nível mínimo de ocupação das prisões. Ou seja: é de interesse da empresa, e do governo, que haja mais prisioneiros, e deixa de ser do interesse dos contratantes que o crime diminua. Não é apenas obsceno, mas é extremamente ilógico esse conflito com o interesse maior da população –o de diminuir a criminalidade (o que por sua vez diminuiria a prisão). Segundo a revista Mother Jones, o governo do Estado do Arizona oferece a 3 prisões privadas a garantia de 100% de ocupação das camas ou o pagamento de multa.
A questão das prisões por lucro se complica mais ainda quando a gente se dá conta que mudar a forma de pagamento dos contratos pode criar outras anomalias sociais. Veja só: se a remuneração por número de prisioneiros pode estimular a condenação em massa, o pagamento por unidade prisional pode ter o efeito contrário –a empresa receberia o mesmo valor com 100 ou 1.000 prisioneiros, e nesse caso seria do seu interesse que culpados fossem inocentados para diminuir os gastos de cada presídio.
Eu não sou especialista nesse tópico, mas coloco essas questões aqui porque o assunto é complexo e precisa ser debatido a fundo. Qualquer decisão nessa área pode transformar a sociedade em várias outras áreas, e de um jeito irreversível. Erros na condenação de inocentes são irrecuperáveis, porque o tempo não volta. E nos EUA, o contribuinte paga muito por presidiário, mas paga muito também para compensar pessoas presas injustamente. Ou seja: um erro de condenação resulta em várias vítimas: a Justiça; a vítima do crime propriamente dita, que não viu o algoz ser punido; o inocente injustamente condenado; e o contribuinte que pagou pela sua condenação e depois pela sua indenização.
As prisões no Brasil são vergonhosas, e não podem continuar como estão. Vi uma pequena fração desse pesadelo nos 2 dias em que passei no Carandiru para o trabalho de conclusão da faculdade. E eu concordo com quem diz que preso deve trabalhar e ser preparado para voltar à sociedade quando chegar o dia da sua liberdade –em vez de ganhar seu PhD em crime, como acontece nas prisões abarrotadas do Brasil, controladas por facções criminosas. Essa opinião me parece quase unânime, mesmo entre grupos de ideologias completamente diferentes. Mas é necessário fazer um debate sério e profundo sobre esse assunto, porque o caminho que vamos seguir, como disse a secretária, não tem volta.
Por Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em ciências políticas e estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos.