17/08/2020 16:15
Autores criticam discurso apocalíptico sobre transgênicos: ”Transgênicos são cercados de fantasias; não há evidência dos males apontados. ciência não é para confirmar ideologias”
Artigo publicado dias atrás, denominado “Milho transgênico saudável: fique bem informado” assinado por quatro autores defende afirmações da celebridade Bela Gil, reproduzindo a mesma ladainha de sempre da “Campanha por um Brasil livre de transgênicos”, criada há mais de 20 anos.
São teses fantasiosas repetidas exaustivamente sobre supostos (porque nunca provados) problemas ambientais, sociais, culturais e econômicos causados pelos transgênicos. É a mesma retórica utilizada por alguns ex-conselheiros da CTNBio que “tomaram assento apenas para dizer sistematicamente não às solicitações de liberação do cultivo comercial de organismos geneticamente modificados”, segundo um editorial de 2007, do jornal O Estado de São Paulo.
Esse artigo me fez recordar a profecia dos 4 cavaleiros do apocalipse (peste, guerra, fome e morte). Os autores afirmam, por exemplo, que os transgênicos estão associados a “diversas doenças, incluindo autismo e câncer”. O blá-blá-blá do câncer é um mito antigo. Inclusive, já teve até um padre que disse que causam aids. Mas que causam autismo, eu nunca tinha lido. Achava que essa leviandade era exclusividade do perigoso movimento anti-vacina que tem causado estragos em todo o mundo.
Também nunca tinha lido que “o milho transgênico excreta no solo uma quantidade de 4 a 16 mil vezes maior de toxinas”. Pedi a um especialista em solos e nutrição de plantas, o meu colega e amigo Ítalo Guedes, para interpretar essa frase. Ele não só interpretou, mas me deu uma aula. Como aprendi muito com a leitura da sua resposta, a reproduzo a seguir:
“O mais curioso é a forma com que os críticos à transgenia e às Ciências Agrárias em geral julgam a validade ou a confiabilidade de artigos científicos. Classificam como controversos os artigos que notadamente não apoiam as suas opiniões. Qualquer texto que aponte maiores teores de inseticidas, toxinas e herbicidas, segundo a balança desses autores, é merecedora de toda a confiança. Caso contrário, não confiam.
Na verdade, aqui se vê um equívoco sintomático de quem não compreende o método científico. A qualidade de um artigo científico, ou melhor, daquilo que é relatado em um artigo científico, não depende da opinião de quem escreve ou de quem lê. Depende da qualidade da pesquisa feita. Aliás, o rigor científico tem sido uma das razões pelas quais os defensores do que chamo de ‘agroecologia política’ e outras distorções têm insistido tanto em uma delirante ‘outra forma de fazer ciência’.
Artigos científicos não são artigos de opinião e fatos científicos não são mais nem menos verdadeiros por que contradizem a opinião de quem lê. Se alguém ‘discorda’ de um fato científico, deve demonstrar a discordância utilizando as ferramentas do método científico: hipótese, experimentação, análise e interpretação de dados e publicação dos mesmos em artigos criteriosamente revisados por pares.
A opinião de Bela Gil e dos autores do artigo em questão têm o mesmo valor da opinião dos que negam a evolução ou as mudanças climáticas e são sintomas do mesmo problema –a tentativa de ideologização da discussão científica, substituindo fatos por dogmas, por meio do esforço contínuo de desenhar sobre a feia realidade objetiva com o lápis colorido do politicamente correto.
O texto em questão se esmera em fazer afirmações com a aparência de verdades científicas. Mas não suportam uma análise minimamente rigorosa. Afirmar que as variedades transgênicas ‘são derivadas de variedades desbalanceadas nutricionalmente’ denuncia um claro desconhecimento dos fatores genéticos e ambientais que influenciam o estado nutricional de espécies cultivadas.
Embora haja alguma influência genética sobre a nutrição das plantas, obviamente, duzentos anos de pesquisa em fisiologia vegetal deixaram claro que o estado nutricional das mesmas é função muito mais do ambiente, ou seja, do fornecimento de nutrientes e de condições ambientais como temperatura e suprimento de água. Se não fosse assim, não haveria sentido em se adubar os cultivos.
Afirmar que as plantas transgênicas ou quaisquer outras plantas cultivadas em sistemas de produção convencional contenham mais resíduos de inseticidas e herbicidas químicos do que plantas cultivadas em sistemas de produção agroecológicos é uma obviedade, ninguém esperaria outra coisa. Mas afirmar que resíduos estão presentes não significa dizer que estejam presentes em concentrações que sejam danosas ao ambiente ou à saúde humana.
Eu entenderia que os autores realmente estivessem preocupados com a presença de resíduos perigosos na agricultura, se tivessem também mencionado a presença preocupante de cobre em produtos produzidos em sistema orgânico, uma preocupação cada vez maior mas raramente comentada entre os defensores de práticas de agricultura orgânica no Brasil. O cobre é um nutriente essencial para as plantas, mas é também um metal pesado. No entanto, é largamente utilizado em sistemas ditos sustentáveis na forma de calda e pasta bordalesa. Convenientemente também, o artigo em questão não faz menção aos casos de contaminação biológica em produção orgânica ou agroecológica tão incensada por todos os que são contra os transgênicos.
Que uma planta de milho transgênico como o milho Bt, por exemplo, exsude (a planta não “excreta”, a não ser em textos ideológicos) substâncias inseticidas no solo tampouco é inesperado, uma vez que essas variedades foram desenvolvidas para isso. O que os autores convenientemente omitem é que estas substâncias inseticidas são naturais e produzidas na natureza por bactérias da espécie Bacillus thuringiensis, presentes naturalmente no solo. Os genes desta bactéria foram introduzidos no milho exatamente para que esta espécie agrícola produzisse tais substâncias ou toxinas naturais de efeito inseticida exatamente para diminuir o uso de moléculas artificiais de inseticidas convencionais.
E é exatamente isso o que o milho Bt faz. Não se sabe se por desconhecer o assunto em que tentam opinar ou se por conveniência ideológica, os autores desinformam ainda o público ao afirmar que essas substâncias naturais inseticidas têm um efeito nefasto sobre a microbiota do solo. Microbiota é um termo que se refere ao conjunto de microrganismos e insetos não são microrganismos. Além de não serem microrganismos, os insetos afetados pelas toxinas produzidas pelo milho Bt têm um efeito nulo sobre a fertilidade do solo, ao contrário do que se esforçam para fazer crer os autores.
Tecnologias como as variedades transgênicas, a adubação, a irrigação, o melhoramento genético convencional e outras de que faz uso a agricultura moderna foram responsáveis pelos notáveis aumentos de produtividade dos cultivos agrícolas sem a necessidade de aumento de área cultivada, muitas vezes com decréscimo da área sob cultivo. Ao contrário, a necessidade de áreas maiores é necessária para sistemas com baixo uso de insumos, como as práticas ditas agroecológicas, uma vez que as produtividades geralmente são baixas. A retórica ideologizada daqueles autores faz crer que apenas os cultivos transgênicos “avançam” sobre áreas que já foram vegetação nativa, mas isso é característica da agricultura como um todo. Ou as propriedades rurais de produção orgânica e agroecológica estão em áreas de vegetação nativa virgem?
A literatura científica não dá razão a Bela Gil. A literatura científica não existe para dar razão a qualquer que seja a preferência ideológica de quem quer que seja. A ciência tenta explicar o mundo e melhorar a vida humana a partir do conhecimento gerado. Não há evidências científicas de que as espécies transgênicas “empobreçam” o solo. Há evidências de que a resistência ao uso de biotecnologia, como os cultivos transgênicos, motivada por razões ideológicas e não científicas, esteja agravando a fome na África. A monocultura é mais antiga do que os cultivos transgênicos. Uma das espécies mais utilizadas em cultivos ditos agroecológicos e biodiversos, a batata-doce, é um organismo transgênico natural.
E há, naturalmente, os efeitos positivos observados em plantações de cultivos transgênicos e que os autores “esqueceram” de mencionar, como a diminuição no uso de inseticidas sintéticos, a expansão da área de plantio direto, a redução de taxas de erosão do solo e perda de água em áreas cultivadas com transgênicos.
Que as pessoas se preocupem com a qualidade do que comem é algo perfeitamente natural e saudável. Que as pessoas discordem com o modelo econômico vigente, ainda que desfrutem dos benefícios possibilitados por este mesmo modelo, é algo que ainda se pode entender.
Mas não há como entender que pessoas sem o menor preparo em Ciências tentem se apropriar de forma canhestra do discurso científico, se esforcem para distorcer informações científicas, para moldá-las às suas preferências claramente ideológicas sem o menor respeito ao rigor científico ou à verossimilhança. Não há como entender nem aceitar. É inaceitável que agroecologistas políticos, negacionistas climáticos, criacionistas se aproveitem do baixo nível de conhecimento científico da população brasileira para desinformar e manipular a opinião pública.”
Por Maria Thereza Pedroso é engenheira agrônoma pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (1993), mestre em desenvolvimento sustentável pela UnB (2000) e doutora em Ciências Sociais pela UnB (2017)
Por Ítalo M. R. Guedes é engenheiro agrônomo, mestre em Produção Vegetal e doutor em Solos e Nutrição de Plantas.