Opinião – Trabalho 4.0

20/08/2020 12:02

”Emprego por carteira assinada, tende a dar lugar ao trabalho independente. Tecnologia reconfigurou atividades e trabalho independente se consolidou”, revela autor

Emprego já não era mais sinônimo de trabalho antes de chegar a crise da covid-19. Depois desta, estará completamente descolado –fora o fato de que robô não pega coronavírus. A pandemia acelerou e agravou os desafios estruturais que cercam as radicais mudanças nas relações laborais e seus impactos para as políticas públicas.

Para demonstrar e discutir diferentes aspectos destas tendências anteriores à pandemia foram reunidas análises de diferentes autores na obra coletiva Trabalho 4.0. É mais um livro da série do IDP com Editora Almedina e inserido no projeto de pesquisa do Governança 4.0 (clique aqui para saber mais), que se propõe a discutir o futuro das instituições e administrações públicas diante da revolução digital.

O livro compreende 7 capítulos, de 11 autores, sob nossa coordenação, e se propõe a tentar cobrir uma lacuna de estudos e debates no Brasil em torno dos efeitos das novas tecnologias e novas relações econômicas e sociais sobre o trabalho e suas políticas. Até antes da chegada da covid-19, apesar do Brasil participar ativamente das mudanças tecnológicas, não se contava com muitos estudos sobre as mudanças nas relações trabalhistas, que pouco tinham a ver com a chamada reforma trabalhista –que ainda passava por manter empregos, mesmo que contratados por uma empresa intermediária em lugar a mão-de-obra.

Cada vez mais o trabalho passou a ser prestado de forma independente e não apenas pelo caso mais visível dos motoristas de serviços de aplicativos ou os entregadores de plataformas digitais. Pesquisas recentes reforçam que o trabalho independente não apenas decorre da falta de emprego com carteira assinada, como também da opção dos próprios trabalhadores por preferiam renda, sem local e horário fixos de trabalhos, optando por renda no lugar de benefícios. A covid-19 antecipou para a crise da falta de emprego e de trabalho, e por conseguinte de renda mínima pra sobreviverem, o que será uma questão grave em poucos anos ou décadas, quando os mesmos trabalhadores forem se aposentar e não tiverem direito ao benefício do regime geral.

Sem emprego, sem Previdência e sem Estado. Como conceder proteção ao crescente contingente de trabalhadores independentes? Para começar a tentar a responder esse tremendo desafio, o livro Trabalho 4.0 traz uma visão plural, atualizada, abrangente e consistente de suas diferentes questões por profissionais com diferentes formações e experiências profissionais ¹. Vale antecipar e de forma muito sumária alguns aspectos discutidos no livro.

No âmbito do emprego, o objetivo maior da esfera pública deve ser entender o impacto nas relações de trabalho e sociais da substituição do trabalho humano por robôs e agentes inteligentes. Quanto à Previdência social, por mais que esta tenha sido deci­siva para deterioração fiscal no país, a sua reforma não deveria se limitar aos impactos nas contas públicas. Uma visão estratégica e mais abrangente pode contemplar o pacto de coesão social e a formação de poupança domiciliar, entre outros aspectos ².

Com relação à indústria nacional, essa já possui desafios imensos, além de fatores estruturais. Destaca-se, em particular, o seu mercado de trabalho. Há anos, o Brasil já vive um processo de transformação, sobretudo no setor privado, tendo em vista que os assalariados de renda mais elevada passaram a ser contratados como pessoas jurídicas. Na indústria local, o trabalho autônomo formalizado é bastante diversificado, com alguma predominância de ocupações ligadas à construção civil e con­fecção do vestuário. Em geral não são ocupações de alta tecnologia e seus trabalhadores são ligeiramente menos escolarizados do que os empregados com carteira, mas bem mais do que os informais o que deixa claro que não se pode confundir o autônomo formal com as formas de inserção precária típicas da informalidade ³ ⁴.

Se já não fosse o bastante, vale ainda destacar a entrada no mercado de trabalho das novas gerações. A forma como o jovem de hoje encara o emprego mudou, desde sua formação escolar até sua carreira profissional –e tam­bém o que se pode esperar do poder público e do futuro que este possa lhe oferecer. No Brasil, jovens de classe média, entre outros valores a respeito do uso do seu tempo, buscam a valoração da independência em de­trimento à carteira assinada. Se esse fato se confirmar numa população mais ampla, virá somar-se a uma porcentagem já muito elevada de trabalhadores independentes. Entender melhor essas novas tendências é muito impor­tante para desenhar propostas de políticas públicas voltadas ao mercado de trabalho ⁵.

Outro aspecto importante se dá pelas tecnologias de Inteligência Artificial (IA), que representam uma nova fronteira para os negócios digitais e, gradativamente, vêm sendo incorporadas aos apli­cativos, aos serviços, aos produtos e aos processos, mediando a comunicação e as relações sociais em todas as suas dimensões. Esse movimento reflete os recentes resultados positivos dos modelos estatísticos preditivos de redes neurais (deep learning), que viabilizaram, em larga escala, identificar padrões e correlações com base em grandes quantidades de dados; seus algoritmos são concebidos, treinados e aperfeiçoados a partir dos dados captados por meio de distintos sensores, particularmente nas interações on-line⁶.

Haverá uma ampla necessidade de profissionais aptos a desempenhar as novas funções trazidas pela transformação digital. Numa velocidade inédita, as máquinas e os algoritmos inteligentes assumem desde tarefas repetitivas e rotineiras até as cognitivas.

Entretanto, ainda capacitamos profissionais para um mercado do século 20, o que implica, em parte, a baixa produtividade do país. Se faz necessário pensar em como reciclar profissionais e capacitar novos que hoje possuem deficiência na formação básica em conhecimento de tecnologia, análise de dados e matemática/estatística/algoritmos, habilidades que serão imprescindíveis num futuro próximo.

Não apenas pela automação, mas pela retração da economia, como a provocada pela recessão ou depressão da covid-19, se tornou premente repensar os esquemas de proteção social dos trabalhadores, sobretudo daqueles que não mais terão um vínculo em­pregatício. Não poderão receber seguro-desemprego porque sequer estavam empregados com carteira assinada e isso exigirá um novo pacto ou contrato, social e também econômico, para lidar com essa realidade. Um dos eixos dessa mudança de estrutura no Brasil deverá passar pelo FAT e BNDES, de modo que o amparo ao trabalhador deverá assumir outras formas que não apenas aquela presa a carteira assinada, bem assim o financiamento de investimentos, também deverá pensar em trabalho e não mais apenas em emprego ⁸.

Enfim, da academia às autoridades econômicas e legisladores, é preciso se pre­parar e, sobretudo, mudar as políticas públicas de práticas. O setor privado já mudou e não sobreviverá quem ficar preso ao passado. Agora, é premente diagnosticar e traçar um plano estratégico para lidar com essa nova realidade tecnológica, econômica e social.

As mudanças tecnológicas são inexoráveis. O mesmo se pode dizer da globalização e da concen­tração de negócios, desde o comércio eletrônico até as diferentes fontes de entretenimento. Impostos não continuarão a ser cobrados no futuro como hoje são no presente. Moedas, instituições bancárias, transações financeiras também mudarão, rápida e radicalmente. Previdência social, saúde pública e até ensino mudarão.

Observação: O livro Trabalho 4.0 será lançado em 19/8/2020, as 10h, em debate a ser realizado pelo IDP, com apresentação do Ministro Gilmar Mendes e moderação pelo autor do seu prefácio, Ministro Yves Gandra. Terá transmissão e gravação disponíveis no canal no YouTube (clique aqui para assistir).


1 O livro Trabalho 4.0 teve por base pesquisas realizadas para a CNI e a UNESCO, concluídas em dezembro de 2018, revistas e atualizadas. Outros trabalhos foram agregados em torno das mesmas discussões que cercam o futuro do trabalho e das instituições e políticas públicas que os regulam. Nas notas deste artigo apresentadas a seguir são citados os títulos de capítulos e os respectivos autores dos livros.

2 As Novas Relações do Trabalho, por José Roberto Afonso e Thiago Felipe Ramos de Abreu.

3 Mudanças na Sociedade e no Setor Produtivo Decorrentes da Revolução Digital, por Fabio Silveira, Geraldo Biasoto Júnior, Adriana Nunes Ferreira e Daniela Gorayeb.

4 Trabalho independente: uma análise para ocupações industriais, por Anaely Machado e Paulo Henrique da Silva.

5 As Novas Economias Digitais: Impacto sobre o Trabalho e a Gig Economy, por Marie France Garcia-Parpete Camila Bevilaqua.

6 Fundamentos da Economia de Dados: como os dados e a inteligência artificial impactam o trabalho, por Dora Kaufman

7 Os impactos esperados das mudanças tecnológicas: novas habilidades demandadas dos trabalhadores, por Dora Kaufman

8 Seguro-social e desenvolvimento: o velho Keynes e os novos desafios, por José Roberto Afonso

 

 

 

 

Por José Roberto Afonso, 58, é economista e contabilista. É também professor do mestrado do IDP e pós-doutorando da Universidade de Lisboa. Doutor em economia pela Unicamp e mestre pela UFRJ.

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