Opinião – É possível conciliar responsabilidades social e fiscal

25/08/2020 10:36

Autor defende manutenção do teto de gastos e compromisso com ajuste fiscal: ”renda básica é bem-vinda, mas teto de gastos continua”, diz Canuto

O mês de agosto vem sendo marcado por oscilações na percepção de riscos de quebra do teto de gastos públicos a partir do ano que vem, ou seja, ao fim do regime extraordinário em vigor durante a crise da covid-19. Não por acaso, assistiu-se a idas e vindas nas taxas longas de juros, bem como na taxa de câmbio.

Nesta semana tivemos até manifestos de economistas a favor e contra a continuidade do teto de gastos. Como assinei o manifesto a favor, perguntaram-me se isso era conciliável com outra chamada que fiz aqui no Poder 360, junto com Pedro Henrique de Cristo, de que um programa de renda básica –para além do Bolsa Família– fosse um legado da crise da covid-19.

Minha resposta é simples: é conciliável, sim!

É fato que tem uma encruzilhada fiscal no caminho do Brasil depois da epidemia. O ritmo de reformas estruturais permitindo a contenção de gastos obrigatórios não tem sido rápido o suficiente, mesmo com a reforma da Previdência, para evitar o encolhimento do espaço orçamentário disponível para gastos discricionários essenciais. A ponto de alguns já considerarem inevitável a escolha entre desrespeitar o teto ou o país parar. Por outro lado, como realcei aqui, respeitar o teto nos anos a seguir pode muito bem acabar fazendo a diferença em termos da definição de qual trajetória a dívida pública e o crescimento econômico tomarão no Brasil. Como então conciliar com o clamor por um programa de renda básica?

Um relatório produzido por Gabriel Barros, do BTG Pactual, datado de ontem (can we conciliate social and fiscal responsibility?), faz as contas corroborando a possibilidade. Ele mostra que, a não ser pelos riscos de gastos militares e de programas de investimento público ambiciosos, dá para respeitar o teto de gastos até 2022… ao mesmo tempo em que se poderia reformular a rede de proteção social, ampliando e aumentando seu impacto, de maneira compatível. O segredo está em integrar políticas sociais em um único programa, com maior eficiência por conta da substituição de programas atuais por outro mais socialmente progressivo.

Vejamos exemplos de contas mencionadas no relatório:

Uma lista de programas de transferência de renda –abono salarial, salário família, salário maternidade, Bolsa Família, auxílio reclusão, aposentadorias rurais, seguro desemprego, BPC (benefício de prestação continuada) –totaliza perto de R$ 263 bilhões neste ano. Sua fusão permitiria um programa de “renda mínima” de R$ 340 mensais para 64 milhões de beneficiários. Além disso, eliminaria a sobreposição cumulativa desses benefícios para um mesmo grupo familiar.

Gabriel Barros também explora outras possibilidades menos ambiciosas, tais como deixar BPC e benefícios rurais fora da fusão. Ter-se-ia então um potencial entre R$ 90 bilhões e R$ 100 bilhões. Uma série de benefícios que pagam mais de R$ 1.000 mensais a um pequeno número de beneficiários seria trocada por um benefício médio menor, mas alcançando um número bem maior de pessoas.

O relatório nos recorda como o Banco Mundial já chegou a mostrar quão significativo é, no Brasil, o pagamento de vários benefícios a uma mesma família: 38% das famílias que recebem o abono salarial também são destinatários do salário família; 24% dos beneficiários da BPC também recebem Bolsa Família; 33% e 21% dos receptores de Bolsa Família, respectivamente, também o fazem nos casos de salário família e auxílio desemprego. O ponto é o de que a unificação de programas permitiria menor incidência de fraudes e benefícios concedidos incorretamente ou de modo desigual.     

Como já realçamos aqui, a extensão do Cadastro Único para cerca de 65 milhões de brasileiros que vêm recebendo o auxílio emergencial –responsável por um decréscimo do PIB menor que o esperado para o primeiro semestre– foi um dos legados da crise da covid-19. Poderá facilitar a busca de ampliação do escopo da rede de proteção social, assim como servir de base futura para tomada de decisões e formulação de políticas públicas. Como muitas vezes ouvi em meus tempos de Banco Mundial, “é importante conhecer o pobre pelo nome!”. Poder-se-á evoluir de inúmeros documentos para um registro pessoal unificado, inclusive para a recepção de benefícios.

É claro que continua prioritária, a nosso ver, a busca de reformas que viabilizem a mudança na trajetória ascendente de gastos obrigatórios e, assim, abrir espaço para despesas com investimentos e de proteção social sem romper o caminho de ajuste fiscal. Cabe lembrar que, mesmo supondo condições de crescimento potencial brasileiro em torno de 2% ao ano, o teto de gastos implica um ajuste gradual no superávit primário em torno de 0,5 pontos percentuais do PIB ao ano.

Da mesma forma, o tratamento da “obesidade do setor público” brasileiro exigirá a busca de melhor impacto e custo-eficácia do gasto público. O ponto aqui é que, para ser mais responsável socialmente, não necessariamente precisaremos pôr em risco a responsabilidade fiscal.

 

 

 

 

Por Otaviano Canuto, 64 anos, é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no ministério da fazenda e professor da USP e da Unicamp.

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