Opinião – E se as vacinas encalharem?

09/09/2020 00:41

Ao menos 100 vacinas e 200 medicações são estudadas para a cura da covid-19 no mundo: ”Novo coronavírus já está precificado e população já trata com naturalidade”, diz Carvalho

Já relatei aqui o meu espanto ao descobrir que meu bairro tinha (e tem) um foco de escorpiões amarelos, um problema que é, na verdade, nacional e só vem piorando. Uma criança picada tem muita chance de morrer se não receber o soro em torno de uma hora (em breve vou voltar ao tema).

Mas, depois de um ano e meio, a ameaça entrou mentalmente no meu pacote “normal” de cuidados de quem mora em cidades como São Paulo, que inclui precauções para não ser assaltado, atropelado ou vítima de golpe. Aconteceu o que a literatura chama de habituation, uma adaptação ao risco, algo bastante frequente nesse tipo de contexto.

E é o que está acontecendo com o coronavírus. Já está precificado, no pacote, e boa parte da população já trata a sombra do bicho com naturalidade.

A adaptação também ocorre por outros dois mecanismos psicológicos. Um deles é a racionalização, quando assumimos que a ameaça nem é essa coisa toda ou que já podemos ter tido a doença. O outro é a rejeição, quando o risco é ativamente repelido pelo indivíduo, como nos casos em que as máscaras não são usadas de propósito.

Esses três mecanismos podem ser um freio à vacinação contra a covid e se somam a outros pontos de atenção. Quando a imunização estiver disponível, por exemplo, já haverá um percentual razoável da população que terá passado (ou assim acreditará) pela doença.

Tem a questão, crucial, da confiança. Há quase 200 vacinas em desenvolvimento, sendo 30 delas já em testes clínicos. Há tecnologias inéditas e que podem causar medo, como as que usam o chamado RNA mensageiro. Mais ainda, como o caso russo exemplifica à perfeição, há desconfiança de que atalhos podem estar sendo tomados.

Há também a guerra política das redes sociais, que fatura em cima do preconceito e das dúvidas em relação, por exemplo, a imunizantes desenvolvidos na China. Essa carnificina virtual, aliás, já começou.

É um prato cheio, em resumo, para os anti-vaxxers, o grupo que se opõe abertamente a uma das maiores invenções da humanidade. Loucura? Não podemos nos esquecer que uma das marcas do mundo moderno são as cracolândias de narrativas, bolhas onde as pessoas buscam a droga da certeza absoluta.

Nessa pandemia de irracionalidade, não espanta que os índices de vacinação venham caindo pelo mundo. Vai pegar aqui? O estado de São Paulo, para usar um caso próximo, não atingiu a meta mínima de imunização de sarampo em 2019.

GOVERNANTES SUECOS

Acho incrível que presidente, governadores e prefeitos encham a boca para cantar sucesso na guerra contra o vírus, quando os índices de morte por aqui seguem ombreando ou ultrapassando os números da tão criticada Suécia. Reconhecimento de erros e trapalhadas? Jamais. A impressão que tenho é que estamos na Nova Zelândia.

Pois bem, fica o alerta para esses governantes suecos que, sem uma gestão adequada, o risco é de a vacina se transformar em fiasco, esvaziando os louros políticos que dela se esperam (e que fazem parte do jogo).

Para lidar com as forças que podem diminuir a demanda pela imunização, é necessária uma boa gestão de marketing social. Isso envolve coisas básicas como a segmentação dos públicos-alvo, a conquista da confiança e a comunicação que leve em conta o ponto de vista das pessoas e não o dos burocratas.

A abordagem também requer a remoção de barreiras enfrentadas na jornada de vacinação e o desenho de estratégias para lidar com a competição –que se dará não apenas entre produtos com tecnologias distintas, mas, em especial, com narrativas hostis e desonestas. Vacinas novas e que sofrem alguma rejeição, como a do HPV, dão um bom alerta. É um erro comum nessa área, conforme apontam as evidências, reforçar os mitos e informações falsas que se quer combater.

Outro erro é se fiar no que as pessoas dizem hoje, como revelado na última pesquisa PoderData, que aponta alta intenção de tomar a picada salvadora. O problema é que intenção de comportamento com frequência não se traduz em ação.

Além disso, o ser humano não lida bem com escolhas complexas. Para conquistar um dos recursos mais escassos do mundo, o coração e a mente das pessoas, o comportamento tem de ser estupidamente fácil e, acima de tudo, socialmente desejável.

Há, finalmente, questões sensíveis que precisam ser pensadas desde já, porque tendem a ativar algumas armadilhas políticas, como já aconteceu no início da pandemia e que ajudaram a inflar nossos tristes números. Será feita a liberação emergencial ainda este ano, com base em resultados preliminares? A injeção será obrigatória para viagens, acesso a escolas ou a vagas de trabalho? Haverá algum tipo de punição para quem não tomá-la?

Temos de evitar, enfim, que as tão necessárias vacinas encalhem, por incrível que essa hipótese hoje possa parecer.

 

 

 

 

 

Por Hamilton Carvalho, 48 anos, estuda problemas sociais complexos. É auditor tributário no estado de São Paulo, doutor e mestre em Administração pela FEA-USP, ex-diretor da Associação Internacional de Marketing Social, membro da System Dynamics Society e da Behavioral Science & Policy Association. É filiado à Rede Sustentabilidade.

Tags: