21/09/2020 11:48
Ministro Jorge Oliveira entregando texto da reforma tributária ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia: ”Alcance é limitado. Militares e juízes de fora. Confusão entre Estado e governo”, afitrma Kupfer
A reforma administrativa finalmente entregue ao Congresso pelo governo Bolsonaro, nesta 5ª feira (3.set.2020), configura uma proposta peculiar: trata de tudo, mas, no curto prazo e mesmo no médio prazo, não afeta ninguém. Restrita aos serviços civis do Executivo Federal, a reforma só vai valer para os novos ingressantes no serviço público. Além disso, mesmo os novos ingressantes nas carreiras militares, da magistratura e dos escalões superiores do Legislativo ficarão de fora da reforma.
De acordo com explicações de técnicos do Ministério da Economia, os servidores fardados da União, assim como os servidores togados e outros da elite do Judiciário não foram enquadrados porque não são “servidores”, mas “membros” dos poderes. A justificativa de semântica capenga, que realmente vale apenas para os congressistas, não encobre o fato de que a reforma acaba circunscrita às faixas inferiores da pirâmide do funcionalismo.
Não é difícil comprovar que o alcance da reforma é restrito. Se incluísse os atuais servidores civis na ativa, a reforma afetaria não mais de 5% do total de funcionários das três esferas de governo, que somam perto de 12 milhões de trabalhadores. É possível que a decisão de só fazer valer a reforma para os novos ingressantes no serviço público se deva ao temor de uma onda de judicialização em torno da questão dos direitos adquiridos.
Mesmo com a previsão de que 1/4 do funcionalismo federal irá se aposentar nos próximos 3 anos, o impacto da reforma apresentada para o ajuste das contas públicas vai se alongar no tempo. Com a exclusão de praticamente metade do contingente ativo, representado, principalmente, pelos mais de 400 mil militares lotados no Ministério da Defesa, seu efeito fiscal será limitado.
A reforma do governo Bolsonaro, porém, foi concebida como uma espécie de ponte para o futuro, que, idealmente, alcançará por completo a estrutura, a organização e a dinâmica do serviço público, quando novos servidores puderem ser enquadrados em suas normas e regras. Essa ambição faz com que se possa prever uma tramitação demorada no Congresso, com possibilidade de que sejam introduzidas alterações significativas no projeto original do governo.
Serão 3 fases de tramitação e aprovação. A primeira, restrita à uma PEC (proposta de emenda à Constituição), pretende estabelecer os conceitos norteadores da reforma. Só quando a discussão da PEC estiver bem encaminhada, há a promessa de que serão apresentados os diversos projetos de lei que darão forma concreta à reforma. Na terceira e última etapa desse processo, um projeto de lei complementar, regulamentando as regras fixadas na fase anterior, entraria em discussão e votação.
Especialistas nos ritos de funcionamento do Congresso preveem que os últimos atos da reforma só seriam aprovados em 2022, portanto 3 anos depois do início do processo. O fato é que, restrita ou não e se alongando no tempo ou não, uma reforma administrativa é necessária. O funcionalismo é hoje um conjunto pesado, lento, caro e ineficiente.
Há, na proposta do governo, boas ideias para dar mais agilidade e eficiência à máquina pública. Mas seria preciso cuidado na correção dos defeitos e desvios. O bom caminho passa por evitar preconceitos nos diagnósticos e por fugir de cálculos por médias simples. São muitos os riscos de errar na mão.
Um desses riscos é esquecer as imensas desigualdades e assimetrias que convivem no serviço público. As diferenças são gritantes, tanto nas atitudes individuais quanto na remuneração de cada um. Se há os que suam a camisa para driblar o trabalho, a maioria é de funcionários dedicados. Assim como há marajás com salários e privilégios inacreditáveis ao lado de uma massa de trabalhadores com ganhos modestos. Generalizações, nesse caso, tendem a ser injustas e cálculos apenas baseados em médias, enganosos.
Outro perigo a ser evitado é o de confundir a natureza do serviço público com a concessão de privilégios. Para muitos, por exemplo, a estabilidade do servidor é um privilégio, quando, na verdade, trata-se de determinados cargos, sobretudo aqueles definidos pelas chamadas “carreiras de Estado”, a estabilidade não é privilégio, mas uma das pilastras de sustentação da sociedade democrática.
Há muitos aspectos obscuros na reforma do governo e falta de transparência em vários pontos. Ficou faltando, na apresentação da proposta, uma série de detalhamentos, principalmente a respeito dos projetos de lei que serão oferecidos após a aprovação da PEC do novo regime de vínculos e da modernização da administração pública. Sem esse prévio detalhamento, a aprovação da PEC poderia significar a assinatura de um cheque em branco para o governante de turno.
A proposta de reforma altera vínculos funcionais dos servidores, criando categorias que permitem contratação sem concurso público típico, ainda que sem estabilidade, só assegurada às “carreiras de Estado”. Cria também, em lugar do estágio probatório, o vínculo de experiência, pelo qual servidores concursados só garantirão o cargo após avaliação ao final de um período de experiência.
Se, de um lado, o estágio probatório tem sido usado apenas pró-forma, não está claro, de outro, quem avaliará e como serão avaliados os servidores que passarem pelo período de experiência. Não há também normas já estabelecidas para os processos de contratação de pessoal. Nesse quadro até aqui fluído, a reforma propõe ampliar os poderes do presidente da República de contratar e demitir pessoal –efetivos ou comissionados–, assim como criar, transformar e eliminar cargos e órgãos.
Esse aumento de poder direto do presidente é preocupante. Sem os devidos freios, com os termos da proposta ainda restritos a formulações genéricas de “boa governança”, mas sem as necessárias e efetivas vedações, essa ampliação de poder corre grande risco de se transformar em terreno propício para abusos, negociações de interesses e, em uma palavra, corrupção. Ao possibilitar maior confusão entre governo e Estado, o perigo, por ironia, da reforma de Bolsonaro é acabar acentuando muito daquilo que o discurso do governo diz querer combater.
Por José Paulo Kupfer, 70 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve colunas de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão, lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e Ordem dos Economistas do Brasil. Também é um dos dez “Mais Admirados Jornalistas de Economia”, nas votações promovidas pelo site J&Cia. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.