Opinião – Tempos modernos

22/09/2020 12:40

”Em Tempos Modernos (1936), personagem de Charles Chaplin é engolido por máquina: futuro da Justiça é virtual e distância pode prejudicar”, afirma autor

O atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, concedeu uma interessante entrevista neste fim de semana, em que, indagado acerca do custo da Justiça no Brasil, que subiu de R$ 351 para R$ 479 por habitante nos últimos 10 anos, fora a inflação, respondeu o que imaginava fazer para que ela fosse mais ágil e barata. Disse:

“O Judiciário tem se reinventado nos últimos anos, a ingressar na era digital. No futuro, os fóruns não necessitarão de espaços físicos, pois todos os serviços serão fornecidos on-line. Isso tende a diminuir muito as despesas, pois tudo estará disponível na internet. O alinhamento entre a inteligência humana e a artificial também melhorará o gerenciamento de processos e de recursos humanos. Os robôs realizam em 5 segundos o trabalho de 100 funcionários.”

Lembrei-me muito do último filme mudo do genial Charles Chaplin, de 1936. Nele, O Vagabundo (“Little Tramp”) vive situações em que, numa linha de montagem, é submetido a indignidades, tendo de parafusar uma quantidade cada vez maior de peças, comandado por uma “máquina de alimentação” avariada. Numa das cenas geniais, Carlitos, nome que se deu no Brasil para a personagem, mergulha na máquina em busca de seu chefe, tragado pelo mecanismo. Era uma crítica severa contra a impessoalidade, o distanciamento entre as pessoas e a nova ordem política que começava a se impor no mundo.

Ontem, conversava com um desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, e ele me dizia de uma conversa que teve com um colega nordestino, de um Estado muito pequeno, em que este relatava, eufórico, que no seu torrão o processo digital já tinha sido totalmente instalado e, agora, todos os magistrados residiam na capital. Lembrava-se, saudoso, de quando foi promotor de Justiça em Porto Nacional, então em Goiás, e a paixão que nutria pelos seus habitantes, o cotidiano da outrora cidadezinha e das pequenas confusões que resolvia por lá. Mas que muitas vezes descambavam, se não compostas, até em homicídios.

Busquei na memória alguns casos que vivenciei como integrante do Ministério Público, em início de carreira. Num deles, ia até o cárcere ver as condições em que ele se encontrava e como estavam os presos. Tinha um que havia assassinado alguém, que tentara molestar sua mulher e filha com uma “lambedeira” (faca). Sempre reclamava que a comida estava “fraca”. Pensava comigo: impossível, pois eu como no lugar onde ela é feita. Comida caseira da pensão de Dona Emília, a Fófinha (sic), muito boa, por sinal. Não dava pelota para a reclamação, mas via que o preso estava emagrecendo. Um dia, me disse: “Doutor, não aguento mais. Essa comida vai me matar”. E eu, simplesmente, não conseguia entender, até que o encarregado da delegacia, um Cabo, me explicou. O detento era um peão acostumado a acordar às 4 da manhã e comer uma refeição completa, repetida às 10 horas e, depois, às 17h. Agora, tomava café da manhã, almoçava e jantava em horários diferentes dos habituais e numa quantidade ínfima, perto do que era costumeiro. “Fraca”, para ele, era o pouco que vinha. Procurei Fófinha, que, imediatamente, dispôs-se a mandar mais uma marmita para o xilindró, desde que o prefeito pagasse por ela. Procurei-o, e logo concordou. O problema foi resolvido, sem ação civil ou penal (na época, prefeito era processado no 1º Grau de jurisdição), apenas com bom senso.

As autoridades tinham uma aura de respeito, o promotor era um verdadeiro juiz de pequenas causas. Filhos que começavam a dar problema em casa eram levados para aconselhamento. Reconhecimento de paternidade e pensão de alimentos eram assuntos recorrentes no gabinete. Lembro-me de uma dissolução de sociedade de fato em que o casal brigou até o fim para ficar com um pote de barro.

Certa feita, ao chegar numa comarca, deparei-me com uma situação inusitada, um colega promotor havia ingressado com ação civil pública para retirada de garimpeiros de um rio bastante generoso em ouro. Ele ali substituía, enquanto não chegasse um promotor titular. O juiz deferiu liminarmente o pleito, mas também foi logo promovido. O fato é que lá cheguei no meio da ebulição. Uma força policial com 40 homens foi requisitada para cumprir a ordem do magistrado, e a cidade foi invadida por milhares de pessoas, desde os extratores até suas mulheres e filhos. Creio que foi a primeira modulação de efeitos de uma sentença acontecida no Brasil, e logo feita por um promotor. Premido pelo medo e pela prudência, mandei os policiais irem embora e disse à turba que voltasse para seu local de origem, porque iria propor um acordo. E de fato o fiz. Nos 3 anos subsequentes, os garimpeiros e seus familiares foram retirados, ninguém morreu e o rio hoje está despoluído, com saúde pujante.

As eleições, antigamente, eram uma festa. Quando era criança, ia para minha terra natal, juntamente com meu pai, no dia do pleito. Havia foguetes, farta distribuição de material publicitário e o que eu mais gostava, os comitês eleitorais. Achava que esses lugares eram de distribuição de comida, já que as filas eram longas e as pessoas realmente se alimentavam. Na praça principal, num lado, estava o comitê da Arena; no outro, o do MDB. Em 1970, gostei muito de um prato que saía lá para as bandas do Mandabrasa, apelido da agremiação opositora. Meu pai logo me impediu: “Nós somos da Arena!”.

Já como promotor, gostava de ver o circo pegar fogo. Os debates, as fofocas, intrigas, sempre foram um charme. No interior, à medida em que o tempo corre e as eleições vão se aproximando, os ânimos também ficam quentes. Até crianças saíam no braço e não era raro mulheres se estapearem e puxarem os cabelos umas das outras. Numa ocasião, meu filho, criancinha, era muito amigo de um colega da escola. Ia sempre à casa dele para tomar banho de piscina. O pai saiu candidato a prefeito e a futura primeira-dama, bastante curiosa, perguntou ao meu pimpolho quem teria meu voto. Ele não pestanejou: “Meu pai vai votar no outro candidato, mas eu vou votar no seu marido”.

Noutra feita, já no clima de vitória de um candidato, descia eu a rua onde morava o derrotado e, nesse instante, uma multidão adversária fazia a maior algazarra em frente à casa do desditoso. Alguns gaiatos começaram a jogar pedras, galhos e foguetes no telhado. Embora o eleitor não possa ser preso durante determinado período eleitoral, recolhi todos aos costumes para o devido sabão. Qual não foi minha surpresa quando cheguei na delegacia e lá se encontrava, entre os meliantes, também um juiz de direito, saudoso amigo meu, que era da cidade e depois se tornaria desembargador. Exclamei: “Mmmôoooççuu!!”. Aí, ele me deu uma lição: “Isso aqui é festa, Demóstenes. Relaxa, na eleição passada, nesse momento, eram eles que estavam comemorando em frente às nossas casas. Esse é o costume daqui, igualzinho o ‘entrudo’ [festa carnavalesca em que as pessoas são molhadas]”. Hoje, eleição é crime, tristeza e obrigação.

Mas nem só de sisudez viviam juiz e promotor. Recordo-me que numa outra comarca, numa discussão de ação possessória, chegou uma das partes, paupérrima, mas com 8 filhos, numa escadinha que, creio, tinha de 15 anos para baixo. O juiz, muito impressionado, logo se dirigiu ao matuto: “Sua prole é grande, hein?!”. “E grossa”, redarguiu, espantado com o questionamento. Logo tentou dar mais detalhes, mas o magistrado voltou de imediato à discussão da lide. Quando me encontro com ele, agora desembargador, parto logo para a galhofa: “E a prole?”. É o nosso código para cair na risada.

Prevejo que nos tempos modernos, os jovens judicantes e os acusadores já não mais passarão por essa vivência. Tudo agora já não tem mais sentido. Todos se alocarão na sua residência (na capital de seus Estados ou, no máximo, em cidades de grande porte), em home office, decidindo sobre a vida de pessoas das quais não sabem nada. Aí me vem à memória, de novo, o velho Chaplin, que, no seu primeiro filme falado, “O Grande Ditador”, traz uma frase que merece ser refletida por aqueles que decidem sobre a vida dos outros: “Não sois máquinas, homens é o que sois!”.

 

 

 

 

Por Demóstenes Torres, 59 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.

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