Opinião – Enquanto o mercado se preocupa com risco fiscal, país vive risco alimentar

10/10/2020 22:15

No mercado financeiro e afins, a preocupação do momento é com o risco fiscal. Se a explosão de despesas públicas com a pandemia não for contida, o teto de gastos pode naufragar, o dólar iria às nuvens e aí a inflação ninguém segura. O crescimento, que já não é dessas coisas, vai para o brejo de vez.

Há, no entanto, outro risco muito mais grave, embora silencioso e quase sempre longe dos holofotes, que não preocupa, mas deveria preocupar, o mercado. É o risco da fome, que voltou a ameaçar um crescente contingente de brasileiros, depois de ter sido contido, na primeira década e meia deste século. A disseminação da fome não configura apenas uma vergonhosa e inadmissível mancha social, mas aponta também para a inviabilidade de um país produtivo, com crescimento vigoroso e minimamente civilizado.

A expressão “insegurança alimentar”, que frequentou a campanha eleitoral de 2002 e os primeiros meses do primeiro mandato presidencial de Lula, no rastro da discussão do Programa Fome Zero, depois absorvido pelo Bolsa Família, foi aos poucos saindo de cena. Essa desejável descida para as sombras acompanhou a curva de redução da insegurança alimentar, ocorrida no país de 2004 a 2013.

Mas nova pesquisa do IBGE, extraída de outra pesquisa maior, a de Orçamentos Familiares, realizada entre 2017 e 2018, detectou uma regressão nos mapas da fome, no Brasil, desde 2013, ano da pesquisa anterior da série iniciada em 2004. A fome ou a insegurança alimentar – definida, no sentido amplo, como a incerteza se haverá o que comer amanhã, entre 2017 e 2018, está presente, de algum modo, na vida de 40% dos brasileiros. Repetindo: quase metade da população não tem garantias de que haverá comida no prato a cada santo dia!

A reversão, agora para cima, da curva da fome é de apertar o peito. Eram 15 milhões de cidadãos que, em 2004, sofriam de insegurança alimentar grave, ou seja, enfrentavam redução quantitativa de alimentos, o que atingia inclusive as crianças da casa. Daí o número recuou para 11,3 milhões, em 2009, e chegou ao mínimo de 7,2 milhões, em 2013. Cinco anos depois, em 2018, voltou a 10,3 milhões, adicionando 3,1 milhões de pessoas à dramática rotina de falta de comida. Desenhando: 5% dos cidadãos brasileiros, concretamente, no seu dia a dia, passam fome.

O mapa da fome reproduz as mazelas escandalosas da pobreza, da desigualdade e da concentração de renda no Brasil. Metade de quem vive em insegurança alimentar está no Nordeste. Mais da metade dos domicílios onde há fome é chefiada por mulheres. Negros vivem mais a situação de insegurança alimentar. E casas em que a densidade habitacional é mais alta são mais afetadas pela falta de comida.

Mais trágico de tudo é que o espectro da fome ameaça metade das crianças brasileiras até 5 anos. A pesquisa aponta que, nas suas famílias, a alimentação sofre constantes restrições de quantidade e na qualidade. Não há maneira mais segura de garantir um futuro de subdesenvolvimento para uma sociedade do que negligenciar na oferta de condições básicas de vida saudável para seus pequenos cidadãos. Assegurar alimentação suficiente e de qualidade para as crianças é a primeira dessas condições.

É um escândalo que tenha ocorrido essa deterioração na qualidade básica de vida da população. Ainda mais num país que está entre os principais exportadores de commodities alimentícias e proteínas animais de todo o mundo. Não, não é a escassez de alimentos, como ocorre em regiões áridas da África, por exemplo, que causa fome no Brasil.

Mesmo a insuficiência de renda tem de ser devidamente relativizada como causa da falta de acesso a uma alimentação saudável e regular. Ainda que a economia viva um período de recessão, com aumento do desemprego, não é a redução da renda disponível que deve determinar a existência ou não de segurança alimentar.

A fome deriva da ausência de um conjunto amplo de iniciativas, cuja ação ineficiente ou mesmo sua inexistência só revela o desprezo dos governantes e de seus apoiadores diante da população mais vulnerável. A solução não é única nem simples, mas é conhecida e já foi testada com algum sucesso.

Não fosse assim, seria difícil entender porque a fome incide mais na área rural do que na área urbana. Segundo a pesquisa do IBGE, em 2018, 40% da população rural, mais próxima, portanto, das fontes de produção de alimentos, enfrentava insegurança alimentar, o dobro do percentual da população urbana na mesma situação.

É uma equação em que entram, entre outros, sistemas locais de irrigação, extensão rural, programas de regulação de estoques, políticas de preços mínimos e seguros à agricultura familiar. Sem falar, é claro, nos hoje óbvios programas de transferência de renda, voltados para a garantia do acesso aos mercados, por diversos canais.

Quando se fala em programas de transferência de renda, logo o Bolsa Família vem à mente. Mas ele não é o único a dar sustentação básica aos vulneráveis. Tão ou mais importante, por exemplo, é o papel da Previdência Social. Em razão das transferências previdenciárias, que se concentram na faixa de um a dois salários mínimos, é muito baixa a parcela de pobres entre os idosos. Da mesma maneira e pela mesma razão, a segurança alimentar é maior na população acima de 60 anos.

A verdade é que nenhuma sociedade decente deixa de garantir alimentação regular e saudável à população mais vulnerável –essa preocupação ficou clara, na pandemia, com a saída temporária de grandes exportadores de alimentos do mercado internacional, para garantir os estoques domésticos. No Brasil, porém, onde a pobreza e a fome voltaram a ser banalizados, o governo de turno se empenha não na garantia do direito a uma alimentação regular e saudável, mas na defesa da oferta de alimentos superprocessados, na contramão das práticas cada vez recomendadas em todo o resto do mundo.

 

 

 

 

Por José Paulo Kupfer, 70 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve colunas de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão, lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e Ordem dos Economistas do Brasil. Também é um dos dez “Mais Admirados Jornalistas de Economia”, nas votações promovidas pelo site J&Cia. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.

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