Opinião – Pecado original é da Receita Federal, não das igrejas

29/09/2020 14:10

Sede da Igreja Universal na Baixada Fluminense 

Semanas atrás foi submetido à sanção do presidente da República o Projeto de Lei nº 1.581/2020, de iniciativa do deputado Marcelo Ramos (PL-AM) que, depois de tramitar pelos corredores e Comissões do Congresso Nacional, sofreu algumas alterações e, como é comum, foi “engordado” por algumas emendas, das quais a mais noticiada foi a promovida pelo deputado David Soares (DEM-SP), que altera o artigo 4º da Lei nº 7.689/1988 e o artigo 22, §16 da Lei nº 8.212/1991. Nada obstante, sob forte pressão midiática, nessa parte o PL foi vetado por Jair Bolsonaro –embora ele mesmo tenha sugerido que o veto fosse derrubado no Legislativo.

Mas, independentemente dos aspectos políticos que cercam a questão, a matéria do ponto de vista jurídico merece maior atenção, uma vez que parece haver um equívoco acerca do quanto vem sendo noticiado sobre um chamado “perdão” de tributos que seriam devidos pelas organizações religiosas, inclusive no sentido de ser formulada uma PEC (proposta de emenda à Constituição) para sanar uma dita lacuna que existiria na questão, mas que, a bem da verdade, simplesmente não existe.

Veja que os dispositivos indicados no projeto de lei –vetado nessa parte– refletiam a qualificação do contribuinte sujeito a CSLL (Contribuição Social Sobre Lucro Líquido), e instituía uma espécie de perdão das dívidas previdenciárias em decorrência da vigência da Lei nº 13.137/2015, que restringiu a interpretação do §13 do art. 22 da Lei nº 8.212/1991, que, por sua vez, trata da desqualificação da remuneração percebida pelo “ministro de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa em face do seu mister religioso ou para sua subsistência”, para efeitos previdenciários.

As notícias veiculadas pela mídia de um modo geral, entretanto, parecem caminhar mais no sentido político que envolve a matéria, atacando de certa forma a figura do deputado David Soares, que é filho de R. R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, e indicando que o fato de haver uma forte presença evangélica no legislativo faria com que as igrejas fossem beneficiadas de alguma forma. Entretanto, ficou marginalizado o direito envolvido ao caso, que merece toda atenção, pois apesar da fragilidade textual da emenda encartada nos artigos. 9 e 10 do PL nª 1.581/2020, afora a relação umbilical entre o deputado e a matéria objeto da emenda, a proposta parecia estar em plena consonância ao que já vem sendo aplicado pelo Judiciário. Mais ainda, a emenda em questão não só veio a bom tempo como se prestaria a uma boa economia aos cofres públicos.

Aliás, soa estranho a PFN (Procuradoria da Fazenda Nacional) sugerir o veto presidencial pois, como patrona da União das causas tributárias em juízo, e parceira da Receita Federal do Brasil na questão, tem pleno conhecimento do prejuízo que os lançamentos fiscais efetuados em descordo à lei e à Constituição causam ao erário.

Ao caso, explicitando a crítica, primeiramente temos de qualificar a CSLL diante das organizações religiosas, pois a própria natureza desse tipo de pessoa jurídica, cuja previsão legal encontra-se no art. 44, inciso IV, do Código Civil, exclui a potencialidade de incidência da tributação sob análise, pois Igreja em sentido lato não tem lucro, e a CSLL, como descrição textual e legal, para se fazer incidir, exige a ocorrência do lucro.

No artigo 1º da Lei nº 7.689/1988, diz-se que “fica instituída contribuição social sobre o lucro das pessoas jurídicas”. Lucro, por sua vez, pressupõe uma atividade econômica, o que é impossível de ocorrer no âmbito das organizações religiosas –ao menos do ponto de vista legal e teológico. Tanto o é que a própria lei, no artigo 2º, fala qual critério de incidência, ou melhor, de qualificação do lucro.

O Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) de longa data já vem trabalhando o conceito de lucro para efeito de incidência da CSLL e, em qualquer dos caminhos da jurisprudência administrativa, a lógica é sempre no sentido de se pressupor um “resultado operacional”, ou seja, uma operação negocial, de comércio ou de serviço, o que não ocorre com as organizações religiosas.

Logo, nesse ponto, a proposta do deputado David Soares é apenas uma tradução do óbvio que, nada obstante, vira e mexe é ignorado pela Receita Federal do Brasil.

Já quanto a alteração promovida na Lei nº 8.212/1991, especificamente quanto à interpretação restritiva sobre o §13 do artigo 22, a emenda atenderia a outra obviedade da lei e, mais uma vez, a uma gestão tributária temerária por parte da Receita Federal nos casos de lançamento fiscal previdenciário sobre as instituições de natureza religiosa, uma vez que os fiscais têm considerado como fato gerador das contribuições a remuneração percebida pelos religiosos, embora a Lei nº 13.137/2015 diga exatamente o contrário.

A bem da verdade, desde a edição da Lei nº 10.170/2000, excetuou-se da base de cálculo das contribuições de natureza previdenciária a remuneração percebida pelos sacerdotes (em sentido lato), mas ainda assim a Receita Federal continuou a efetuar os lançamentos fiscais, e que levou o Congresso Nacional, quando da análise do Projeto de Lei de Conversão da MP nº 668 –convertida na Lei nº 13.137/2015–, a especificar a interpretação que deveria ser conferida ao §13 do art. 22 da Lei nº 8.212/1991, conforme ficou estabelecido no §14 do mesmo dispositivo.

Assim, ficou claro que a remuneração recebida pelo “ministro de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa em face do seu mister religioso ou para sua subsistência” seria meramente exemplificativa, e não critério taxativo para efeito de desqualificação do conceito de remuneração para incidência das contribuições previdenciárias (inciso I), e que mesmo a ajuda de custo dada aos sacerdotes, quando destinada à atividade religiosa, não poderia ser tratada como base de incidência como eventual remuneração indireta ou direta (inciso II).

Contudo, mesmo diante da obviedade do §13, incluído do artigo 22 da Lei nº 8.212/1991 ainda no ano 2000, e do critério interpretativo constante do §14 que passou a vigorar a partir da Lei nº 13.137 do ano de 2015, a Receita Federal insistia em efetuar lançamentos previdenciários sobre a remuneração percebida pelos sacerdotes. Fato que vinha causando enorme prejuízo à administração tributária e ao próprio erário, não só porque o processamento da questão no âmbito administrativo e judicial resulta em custos diretos à União, mas sobretudo porque é usual a Fazenda Pública ser condenada em vultosos honorários advocatícios aos patronos das organizações religiosas, que diuturnamente se viam obrigadas a ir buscar no Judiciário a aplicação da Lei nº 8.212/1991.

Sobre o tema, para não soar vazia a elucubração, ou parecer uma “tese tributária” de advogado, bom registrar que em agosto 2019, na Solução de Consulta Interna nº 6 – Cosit, a própria Receita Federal do Brasil conclui pela não incidência da contribuição previdenciária sobre “o valor despendido pela entidade com o ministro de confissão religiosa, com os membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, na situação estritamente delineada nos §§13 e 14 do artigo 22 da Lei nº 8.212, de 1991”.

A propósito, ao menos ao que tudo indica, foi só a partir de então que os auditores fiscais passaram a atender a lei e se render ao Poder Judiciário, que já havia julgado a matéria em diversas oportunidades.

Portanto, a proposta do PL nº 1.581/2020 nada mais faz do que atender ao que a lei, o Poder Judiciário e a própria Receita Federal do Brasil já haviam consolidado. Mais do que isso, o tal perdão ainda minimiza os impactos financeiros que o descompasso dos lançamentos fiscais tinha provocado pela insurgência das fiscalizações realizadas a partir da Lei nº 13.137/2015 e que consideraram a remuneração em questão como fator de incidência das contribuições previdenciárias.

Resumindo, para além de qualquer discussão a respeito da relação que existe entre o deputado David Soares e a aplicação da Lei nº 13.137/2015, é importante considerar que quem vinha caminhando de maneira marginal à regra instituída era a Receita Federal do Brasil, dona do “pecado original”, por assim dizer, e que provocou a movimentação dos congressistas. Sendo ainda relevante lembrar que a proposta passou pelas duas Casas Legislativas até chegar as mãos do presidente, ou seja, não é do deputado, mas do Congresso Nacional e no sentido de tentar fazer com que os auditores cumpram a lei.

Outra questão que veio à tona com o PL e o veto presidencial foi uma eventual proposta de emenda à Constituição para tratar do alcance da imunidade que as organizações religiosas têm sobre os impostos, na forma do artigo 150, inciso VI, letra “b”, como se essa imunidade tivesse alguma relação com as contribuições de natureza previdenciária ou a CSLL.

Primeiro ponto, para corrigir uma premissa, é que tributo é gênero, do qual a Constituição desenvolve 5 (cinco) espécies, sendo elas os impostos, as taxas, a contribuição de melhoria, os empréstimos compulsórios e as contribuições de natureza especial (aqui estão as contribuições ao custeio da seguridade social e da previdência).

Segundo ponto, para evitar qualquer confusão, a imunidade a que se refere o artigo 150, inciso VI, letra “b”, da Constituição, refere-se exclusivamente a impostos, ou seja, não tem absolutamente qualquer alcance sobre as contribuições de natureza especial, sejam elas ao custeio da seguridade social ou da previdência.

Portanto, considerando a ululante constatação de que imposto não se confunde com contribuições de qualquer sorte, e que o constituinte originário –aquele que compôs a Constituinte de 1987 e que fez promulgar a Constituição de 1988– não tinha a intenção de conferir imunidade às organizações religiosas sobre as contribuições, mas tão somente aos impostos, parece evidente que não há qualquer lacuna interpretativa que precise ser superada quanto ao alcance do que está disciplinado no artigo 150, inciso VI, letra “b”, ao menos no que concerne a matéria veiculada no PL nº 1.581 e que foi vetado pelo presidente da República.

Agora, se a questão é saber a extensão da imunidade sobre os impostos, é preciso dar alguma atenção ao que já foi decidido em diversas oportunidades pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente porque a matéria já encontra formulação até mesmo em Súmula Vinculante, o que supriria qualquer eventual lacuna que pudesse vir a existir sobre a matéria.

No caso, o argumento comum da Receita Federal do Brasil é no sentido de que a imunidade em questão se restringe ao aspecto físico do templo, ou seja, à atividade realizada exclusivamente dentro do templo e toda a receita ali auferida pela atividade religiosa realizada. O que é algo um tanto quanto fora do contexto normativo disciplinado pela Constituição que, claramente, refere-se à renda percebida pelas figuras jurídicas indicadas nas alíneas “b” e “c” do artigo 150, inciso 4. E para tanto, basta descer um pouco e fazer uma leitura atenta do que diz o §4º do mesmo dispositivo, que não deixa margem a dúvidas quando diz que a imunidade compreende “o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades”.

E assim foi definido pelo Supremo Tribunal Federal, incialmente a partir da Súmula nº 724, que mais recentemente foi convertida na Súmula Vinculante nº 52.

Portanto, não só inexiste essa relação entre o PL e a imunidade, como também não há lacuna alguma a ser suprida por eventual projeto de emenda à Constituição, pois que o que havia de dúvida foi resolvido já de algum tempo pelo Supremo Tribunal Federal, que bem esclareceu que a lógica constitucional da imunidade em questão tem por conteúdo material a renda –qualquer que seja a origem– direcionada às finalidades institucionais das entidades previstas nas alíneas “b” e “c” do artigo 150, inciso IV, e não apenas e tão somente as atividades realizadas nos limites das paredes dos templos, como insiste a administração tributária operada pela Receita Federal do Brasil e Procuradoria da Fazenda Nacional.

 

 

 

 

Por Joao Paulo Echeverria é advogado, graduado em direito pela UnB (Universidade de Brasília), mestre pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), e doutorando em direito pela mesma instituição. Sócio-fundador da Covac Sociedade de Advogados.

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