Opinião – Dourando a pílula para embarque no túnel do tempo das reformas de Guedes

30/09/2020 13:06

Ministro da Economia, Paulo Guedes: gargalos na agenda econômica

“projeto” econômico do governo Bolsonaro, concebido e liderado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, é uma viagem no túnel do tempo. Suas premissas e medidas remetem aos anos 1970 e 1980 do século passado, mas não só. Necessitam que governos autoritários banquem as ações que operam no sentido de precarizar as relações de trabalho e a proteção social, abrindo imensos fossos de desigualdades.

Há pelo menos uma vantagem nesse recuo de décadas. A distância no tempo permite saber que as medidas que Guedes insiste em adotar não deram certo. Uma sociedade que aposta no reforço das desigualdades não tem chance de sair do subdesenvolvimento. Os ricos e os que, mesmo sem o serem, iludem-se que serão aceitos como um deles, acabam percebendo que demanda restrita não dá camisa a nenhuma economia.

O “projeto” de Guedes é ambicioso, ainda que politicamente complicado, mas simples de entender. Seu autor não pode ser acusado de não deixar claro o que pretende. É o já famoso “3D” –desonerar, desindexar e desobrigar– que ele martela como um mantra de monge fanático, e agora parece ter encontrado espaço no governo para avançar.

Os “3D” escondem, sob jargão técnico, a “constituinte pessoal” de Guedes. Desonerar significa retirar conquistas sociais do mercado de trabalho e reduzir freios à concentração de mercado. Desindexar expressa o fim das vinculações de programas sociais ao salário mínimo, e deste da inflação, para corroer valores. Desobrigar quer dizer eliminar pisos e limites a cortes em áreas de atendimento público à população. Realizar tudo isso exige refazer a Constituição de 1988, fruto da negociação de um então novo contrato social, contemplando limites e garantias sociais, antípoda daquele que foi imposto pela ditadura militar.

A ideia de desonerar a folha de pagamentos como política exclusiva de absorção de mão de obra e redução do desemprego é velha, e se provou, repetidamente, equivocada. Em ambiente de crescimento econômico, alívio nos custos da mão de obra, que não precarizem as relações trabalhistas, podem concorrer para o aumento do emprego. Mas a chave do movimento é o crescimento da atividade econômica. Sem expansão dos negócios, nada feito.

Sem crescimento, não adianta dispor de mão de obra a custo baixo. Nenhum empresário contrata algum fator de produção apenas em razão de seu custo. Por mais baixo que seja, estocar insumos que permanecerão ociosos ou subutilizados é óbvio mau negócio. Isso é mais válido ainda no caso da mão de obra. Todos têm fresco na memória o que resultou da política de amplas desonerações do governo Dilma, numa etapa duramente recessiva. Desonerações não seguraram empregos, a economia afundou e as perdas de arrecadação só se aprofundaram.

Compensar as perdas de receita pública derivadas das desonerações com um imposto automático sobre transações, como insiste Guedes, é dobrar o equívoco. Isso porque tributos assim reforçam as desigualdades e, ao reforçar desigualdades, reforçam a permanência do país nas jaulas do subdesenvolvimento.

Usar um imposto dessa natureza, sem travas para a cumulatividade que inevitavelmente promove, é desprezar o papel indutor do desenvolvimento que qualquer sistema tributário merecedor do nome precisa cumprir. Compensar com uma CPMF desonerações das contribuições patronais para a Previdência é ainda mais espantosamente sem sentido.

O descasamento entre o fato gerador da contribuição previdenciária –a remuneração do trabalhador ativo– e os recursos obtidos com um tributo que incide sobre operações digitais/financeiras produziria riscos permanentes de fragilização do sistema previdenciário solidário, até constitucionalmente protegido, que Guedes quer demolir. Recorrer a contorções para terminar a reforma previdenciária que não conseguiu, pegando carona numa reforma tributária, é Paulo Guedes em estado puro.

É perigoso embarcar na canoa de que as bravatas de Guedes –suas reformas para “a próxima semana”– se dissolverão por conta própria, ou, então, pela ação dos militares do Planalto. Estes, empenhados em fazer passar a ideia de que tutelam Bolsonaro e, em consequência, também mantêm Guedes num cercadinho, ao contrário, não raro parecem ser tutelados.

Há exatamente um ano, o então secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, foi expelido do governo, pelo próprio Guedes, a mando do presidente Bolsonaro, por pregar as vantagens de uma CPMF da qual o ministro é hoje o mais ardoroso defensor. Doze meses depois de proibir a discussão de uma CPMF, Bolsonaro já deu seu aval para a discussão da volta do tributo, “desde que não haja aumento de tributos“.

Há um movimento para fazer passar a nova CPMF no Congresso. Depois de conversas com Guedes, lideranças políticas alinhadas com o governo já sugerem “experimentar” o tributo por um tempo. Notícias recentes dão conta de que está tudo quase pronto, esperando o momento adequado para dar o bote.

Como não poderia deixar de ser neste governo, será uma tentativa de golpe, camuflando palavras e expressões. “Substituição tributária” e “tributos alternativos” são as senhas agora usadas para dourar a pílula. Melhor, portanto, seria ficar alerta e não baixar a guarda. Se a coisa passar, antes de dar errado, teria tudo para promover um grande estrago nas linhas de defesa social da sociedade brasileira.

 

 

 

 

Por José Paulo Kupfer, 70 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve colunas de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão, lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e Ordem dos Economistas do Brasil. Também é um dos dez “Mais Admirados Jornalistas de Economia”, nas votações promovidas pelo site J&Cia. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.

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