Opinião – Q-Anon e as figuras nas nuvens

01/06/2021 10:39

A coluna de hoje é uma continuação desta aqui, onde eu falo de algumas crenças e métodos do Q-Anon, um grupo que acredita na teoria de que o mundo é controlado por seguidores do Diabo que praticam a pedofilia. A pessoa que vai salvar o mundo desse pesadelo é Donald Trump, com a ajuda do anônimo conhecido como Q.

O Q-Anon vem crescendo em número de seguidores e em sua influência política, e não é aconselhável, portanto, que seja desprezado como uma mera confraria de lunáticos. Para entender as teorias do Q-Anon, eu passei a fazer parte de alguns grupos no Telegram com centenas de simpatizantes, ou “anons”.

Eu também assisti a um vídeo explicativo de quase três horas bastante respeitado pelo grupo, uma série dividida em dez partes conhecida como “The Fall of The Cabal” (A Queda do Complô, em tradução para o português). Esse vídeo foi legendado em português. Ele foi feito pela holandesa Janet Ossebaard, uma pesquisadora independente que já tem outras estrelas no seu currículo conspiratório, como um livro (esgotado) sobre a “origem alienígena” dos círculos nas plantações. Apesar desse antecedente, o vídeo de Ossebaard é bem mais comedido e razoável do que eu esperava, ainda que sofra de erros lógicos primários, facilmente derrubados pela brisa da razão.

A Queda do Complô merece uma menção honrosa por ligar pontos distantes e desconectados, e fazê-los parecer parte de uma mesma narrativa. É um feito quase impressionante. A história mais abrangente, que abarca quase tudo no vídeo, é a de que o mundo é controlado por seguidores de satã que praticam o canibalismo, estupram, torturam e matam crianças inocentes. Tudo isso por puro sadismo, ou para consumir uma droga produzida naturalmente pelo cérebro de pessoas aterrorizadas, o adrenocrome.

Mas o adrenocrome não parece existir como droga, e surgiu como mito a partir de alguns livros como “As Portas da Percepção”, de Aldous Huxley, e a narrativa semi-ficcional de Hunter Thompson que virou filme, “Fear and Loathing in Las Vegas” (o diretor da película, Terry Gilliam, em entrevista apresentada nos extras do DVD, conta que Thompson disse a ele que a história do adrenocrome era inventada). Hoje essa substância é considerada um elixir dos deuses — no caso, dos diabos.

São várias as pessoas que veneram o demônio em “A Queda do Complô” –gente de tudo quanto  é profissão, etnia, nacionalidade– mas é seguro dizer que todas votariam no Partido Democrata se tivessem a chance. Não se sabe ao certo se essas pessoas têm poder porque veneram o diabo, ou veneram o diabo para ter poder, mas poderosas elas são. Entre esses monstros humanos estão as cantoras Katy Perry, Madonna, Rihanna e Lady Gaga, por exemplo.

A prova de que seriam veneradoras do Diabo é que elas fazem sinais com as mãos emulando os chifres do capiroto, ou aparecem em vídeoclipes sangrando. Os Beatles  também seriam satanistas, algo evidenciado em fotos nas quais eles seguram partes de bebês de plástico. Até o papa Francisco seria um seguidor do Capeta, e isso fica claro quando o vídeo mostra o santo padre fazendo o sinal do tinhoso com a mão.

Eu notei a ausência, contudo, de uma foto que teria feito bastante sucesso entre os anons brasileiros: Michelle e Jair Bolsonaro supostamente saudando o bicho-ruim. A imagem, que circula nas redes, na verdade é dos dois dizendo “eu te amo” em Libras (Língua Brasileira de Sinais). Tudo depende de quem interpreta.

Não é difícil notar como a autora do vídeo se embala na sua narrativa e vai enfiando lixo naquela salsicha de forma tão rápida, e com uma música tão emocionante, que é difícil depois saber o que se está comendo. Em um momento ela cita o ator Christian Bale como satanista porque ele agradeceu ao diabo por um Golden Globe. De fato, Bale ganhou um troféu por interpretar um dos homens mais nocivos e repelentes da política mundial, Dick Cheney. Ao receber o prêmio, em vez de agradecer a Deus, ele fez agradecimentos ao Satã por lhe dar inspiração para o papel. Qualquer pessoa pensante entende o que aconteceu ali – Bale estava associando Cheney à maldade, não ele mesmo. Mas não importa – aquela cena estava boa para o vídeo, e ali ficou.

Outras também foram claramente escolhidas pelo impacto estético e emocional, e nada além disso. Mas o emocional é crucial para a aceitação da teoria. Existe uma frase atribuída a Mark Twain que ilustra com primazia como o ego, a emoção e o investimento pessoal têm papel na consolidação do engodo: “É mais fácil enganar uma pessoa, do que convencê-la de que ela foi enganada.”

A tortuosidade de algumas interpretações feitas no vídeo chega a ser constrangedora. Lembram da cena, em novembro de 2017, em que Trump toma água segurando a garrafa com as duas mãos? E da outra cena, um mês mais tarde, em que ele segura um copo, também com as duas mãos? Isso virou piada, e começaram as sugestões de que Trump estava medicado ou tinha alguma doença degenerativa que o impedia de levar um copo à boca sem derramar a água. Mas para o vídeo do Q-Anon, não foi nada disso.

Eu traduzo aqui o trecho em que Janet Ossebaard explica o que de fato aconteceu:

“Os anons sabiam imediatamente que ele [Trump] estava indicando algo. A garrafa continha água Fiji. A água Fiji é engarrafada na ilha de Wakaya. Em 1973, Wakaya foi comprada por um empresário canadense, David Gilmour. Em 1996 ele fundou Fiji Waters. Em 2016, Claire Bronfman, herdeira da fortuna multi-bilionária da fábrica de bebidas Seagram, comprou 80% de Wakaya do Gilmour e financiou o estabelecimento do Nxivm na ilha — isso mesmo, o culto sexual liderado por Keith Raniere.”

Claro que isso é uma explicação boba demais pra merecer qualquer crédito, mas é assim que o Q-Anon e várias outras teorias conspiratórias funcionam, ligando pontos completamente aleatórios e dando a eles um significado que nunca tiveram. Outras vezes, quando não existem pontos a serem ligados, basta fabricá-los. Eu, por exemplo, poderia agora mesmo lançar uma teoria da conspiração nova, porque em todas as vezes que a narradora quis dizer Wakaya, ela falou a palavra Wakanda. É isso que acontece com mentes conspiratórias – nada é por acaso, tudo tem um significado.

E como o universo onde vamos encontrar significado é praticamente infinito, não faltam pontos para serem ligados. É assim que Ossebaard começa apresentando sua teoria da pedofilia. Ela procura –e portanto acha– essa aberração em todo lugar. Isso é quase como o exercício de procurar figuras nas nuvens. Mas existe uma diferença: nesse caso, as figuras não são produzidas pela imaginação e criatividade. Elas são pre-determinadas, e a quantidade infinita de nuvens permite que elas sejam sempre encontradas.

Eu prefiro comparar isso com outro exercício intelectualmente desonesto e igualmente danoso: aquele que sai à cata de demonstrações de racismo e LGTBfobia em gestos inocentes e em etimologia. Aquele imbecil que viu um gesto de supremacia racial feito por um trabalhador que estava apenas limpando o dedo enquanto dirigia o seu carro (e foi demitido por isso) não tem muita diferença daquele outro paspalho que vê um brinco em forma de triângulo e acha que é sinalização de pedofilia.

Mas muitos dos erros interpretativos nesses casos não são nem por maldade, mas por simplicidade intelectual mesmo. Muito do que se vê é coisa de gente que não pensa com muita profundidade, gente que acharia, por exemplo, que é mais fácil ganhar na loteria com os números 6, 25, 12, 46 e 32 do que com 1,2,3,4,5. A pessoa um pouco mais inteligente sabe que ganhar com a primeira sequência é tão difícil quanto com a segunda, mas uma pessoa ainda mais inteligente entenderia que o prêmio da segunda sequência provavelmente vai ser menor (já que é muito mais provável que outras pessoas tenham jogado nela do que na primeira, e portanto o prêmio vai ser dividido entre um número maior de pessoas).

Teorias da conspiração, em geral, ligam fatos aparentemente desconexos para transformá-los em uma narrativa coesa e assim explicar o incompreensível. O vídeo em questão é superior a outros porque os pontos que ele liga são frequentemente verdadeiros, para a minha supresa. Eu chequei vários deles. Isso não significa dizer que a maneira em que eles foram conectados faz sentido, mas significa que eles têm mais chance de serem críveis, e de assim criar um grupo de seguidores convictos. É disso que pretendo tratar na próxima semana.

 

 

 

 

Por Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em ciências políticas e estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos.

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